Na noite do sábado 21 de março, assistimos o concerto de encerramento do 2º Festival de Música Contemporânea Brasileira, executado por Victor Hugo Toro e a Sinfônica de Campinas no Teatro Municipal. No repertório, Sendas de outro um de Ernst Widmer, Concerto nº 1 para violino e orquestra de Camargo Guarnieri, e as obras dois compositores homenageados do festival: Abertura Issa de Gilberto Mendes e Canticum Naturale de Edino Krieger.
A obra de Widmer é muito bem escrita, funciona bem para a orquestra, e estava planejada para ser a que encerraria o concerto. Mas acho que a direção do FMCB deve ter convencido a Orquestra a deixar por último a peça de Edino Krieger para prestar a homenagem ao compositor presente. De qualquer modo, a orquestra entrou na empolgação rítmica preparada por Widmer e Victor Hugo Toro regeu como se fosse sua última vez. Mas concordo que ficou melhor colocar esta peça por primeiro, dada a dimensão das demais obras que compunham o programa.
Porque o Concerto nº 1 para violino e orquestra do Guarnieri é uma obra entre as melhores da literatura do violino e orquestra. A obra chegou a ser dada como fracasso, visto que estreou em 1941 com o compositor regendo a OSB no Teatro Rex, e depois ficou no esquecimento por mais de 70 anos até ser resgatada por Lutero Rodrigues para o projeto em que gravou a integral dos Concertos para violino e orquestra de Guarnieri. Eu tenho o DVD, já tinha ouvido a obra, olhado a partitura e tal. Mas ver ao vivo pela primeira vez foi outra coisa.
Aí ficou evidente o grau de desenvolvimento da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas. A interpretação proposta por Victor Hugo Toro foi muito convincente. Explorou ao máximo os efeitos pouco usuais da orquestração, sem medo de deixar a obra “pesada” como foi considerada por Guarnieri na primeira audição e pelo violinista Iso Briselli, que deveria executá-la nos EUA após o prêmio recebido pela obra na Filadélfia. Ali a gente vê toda a malandragem do Guarnieri, um cara que aprendeu piano tocando em boate, e achava que não sabia orquestrar, mas que tinha o Villa-Lobos como modelo e as big-bands e orquestras de cinema como experiência. Sim a orquestração deste concerto é muito boa. E a parte do violino solista pode não ter agradado o violinista russo, mas é muito forte. E foi tocada com grande impacto por Francesca Anderegg, que faz sua carreira nos EUA e pode redimir o país do norte da sua dívida com esta peça.
Fomos para o intervalo já embevecidos pela música de Guarnieri, e fica difícil imaginar que podia haver um clímax ainda mais intenso neste concerto. A Abertura Issa de Gilberto Mendes nos recebeu na segunda parte, e pode-se dizer que fez uma desintoxicação do “figurativismo” rítmico e tonal da primeira parte do concerto. Acho que não é uma das obras mais importantes de Gilberto Mendes, e não foi o ponto alto do concerto nem do Festival. Mas somou como experiência para quem estava ouvindo.
Sem dúvida que o ponto alto da noite foi a obra que encerrou o programa. Canticum Naturale foi composta por Edino Krieger em 1972, na época em que o compositor estava dialogando com a chamada escola polonesa, e muito influenciado pela obra de Penderecki. Não é difícil estabelecer esta peça como a obra-prima de Edino Krieger, e certamente é uma das obras sinfônicas mais importantes do repertório brasileiro. Talvez seja também uma das obras sinfônicas mais significativas do mundo na segunda metade do século XX.
Victor Hugo Toro e a Sinfônica de Campinas nos deram uma interpretação muito convincente da peça. Se alguém na plateia tivesse dificuldade com os sons onomatopaicos e o alto grau de ruído que a peça mobiliza, parece que venceu suas barreiras conceituais, porque o público aplaudiu muito. E não era pra menos. Os músicos tocaram como se disso dependesse suas vidas, e pode-se ver que o regente fez uma preparação esmerada da partitura. Tenho a lembrança de ter assistido esta peça em Curitiba em 2013, em comemoração aos 85 anos do compositor. Nossa memória é traiçoeira, mas eu considerei que a Sinfônica de Campinas conseguiu colocar mais energia na execução, chegando a um resultado ainda mais convincente. E olhe que eu já tinha gostado muito da execução da Sinfônica do Paraná, como deixei evidente nesta crítica que escrevi à época.
Durante o concerto foram feitas homenagens: a um dos músicos da viola, aposentando-se após 35 anos de serviço nas estantes da orquestra; a Gilberto Mendes, presente durante todo o festival, mas que já tinha ido embora no dia sábado; a Edino Krieger, compositor presente durante todo o festival e que recebeu pessoalmente a homenagem. Foi homenageada também a pianista Thais Nicolau, diretora artística do Festival.
O Concerto fechou com chave de ouro a programação, e fez valer muito a pena o fato de eu ter ficado em Campinas até sábado. Confesso que estava arrependido de ter marcado minha passagem de volta para domingo de manhã. Os compromissos familiares me tornam difícil ficar longe de casa muitos dias, e o dia de sábado foi inteiro sem programação. Devia ter voltado antes, cheguei a pensar. Mas o concerto no Teatro Municipal fez valer o dia de espera. A Orquestra Sinfônica de Campinas é um conjunto daqueles que vale a pena viajar para assistir – como poucas orquestras no Brasil. Victor Hugo Toro é um dos principais regentes em atividade no país – demonstra que conhece em profundidade as obras que rege, coloca vida nas interpretações e tem a colaboração total dos músicos que estão sob sua batuta. Combinação difícil de se conseguir.
E era realmente só o que faltava para o II Festival de Música Contemporânea Brasileira: um concerto sinfônico de alto nível, onde obras dos dois compositores homenageados dialogassem com outras obras do repertório brasileiro e mostrassem a força da tradição clássica que o Brasil conseguiu construir. E que precisa ser mantida com muito trabalho. É pra isso que servem festivais como esses, sem dúvida.
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Comentários
Uma resposta para “Victor Hugo Toro e a Sinfônica de Campinas: o concerto de encerramento do FMCB”
Não entendo a necessidade de tantos superlativos, André.