O texto é um dos ensaios que compõe o livro Figuras da violência: ensaios sobre narrativa, ética e música popular, recém-lançado pela Coleção Humanitas da Editora UFMG. (Veja a página do livro no site da editora.)
Eu assisti uma apresentação de trabalho do Idelber no Congresso da IASPM em 2004, no Rio de Janeiro, que era sobre esse mesmo tema. Me parece que o texto desenvolve as questões que o Idelber apresentou na sua fala de então.
Sobretudo o texto é, desde já, referência obrigatória para quem se propõe pensar a Música Brasileira, suas implicações políticas e o campo de disputas que se armou em torno do que é ou não autêntico. Neste sentido, o texto de Idelber se soma aos estudos histórico sociológicos que vêm colocando corretamente a MPB como uma construção ideológica – um jogo de exclusões e definições arbitrárias de como devem soar em música a nacionalidade e o discurso engajado de esquerda.
Avelar inicia pela contextualização da cena do heavy metal na Belo Horizonte dos anos 1980. O surgimento de uma grande quantidade de bandas, articuladas em torno da gravadora independente Cogumelo Records, coincidiu com a implosão da música de Milton Nascimento como discurso capaz de fazer sentido para a juventude da metrópole. Na cena nacional, isso se articula com a visão pessimista a respeito da Nova República de Tancredo Neves e os acordos políticos que a MPB fazia, tanto com a indústria fonográfica quanto com o mainstream político.
O heavy metal torna-se então um discurso de uma juventude que não se vê representada na nação, que não articula sua identidade pelos códigos da MPB. Uma juventude que ao mesmo tempo se vê espremida pelo discurso conservador que acusa sua música de depravada e demoníaca e repudiada pelo discurso de esquerda que a vê como alienada e estrangeira.
A dupla recusa é desconstruída pela análise histórica e cultural de Avelar, que coloca o heavy metal brasileiro – e sua principal banda, como gênero musical legítimo da cultura brasileira. A genialidade do Sepultura, para Avelar, estava justamente na capacidade de se antecipar às críticas, transitando por diferentes propostas estéticas que problematizavam os rótulos que os detratores da banda tentavam usar para desmerecer seu trabalho.
As análises que Avelar faz da discografia do Sepultura e de seu papel na cultura brasileira colocam a nu um problema sério do campo dos estudos da música brasileira: não temos discurso analítico ou tradição bibliográfica de estudos que considerem os principais gêneros musicais que “fizeram a cabeça” da juventude pós-abertura. A própria bibliografia que o autor mobiliza para suas análises é mínima: textos gerais em inglês sobre música popular midiatizada, quase nada específico sobre rock no Brasil ou Sepultura.
Finalmente, o ponto alto do texto é a análise da música Ratamahatta, do disco Rooths, de 1996. Sem usar ferramentas de análise musical tradicionais, mas curiosamente, sem desprezar o som musical como às vezes fazem os analistas que vêm dos estudos literários, Idelber Avelar conjuga os sentidos poéticos da letra, timbrísticos do arranjo e semânticos das presenças dos cantos xavantes e da voz/percussão de Carlinhos Brown para colocar a canção do Sepultura num lugar privilegiado de redescoberta do Brasil.
Somente uma banda que fez o caminho “para fora” da brasilidade normativa da MPB, pela via do heavy metal, cantando em inglês e obtendo reconhecimento mundial, seria capaz de reencontrar o Brasil de maneira tão crua como fez na canção analisada. Ao mesmo tempo em que redefinia por dentro o próprio campo de possibilidades do heavy metal e colocava em cheque os discursos da world music articulados na “descoberta” dos índios por Paul Simon.
O texto de Avelar nos obriga a repensar nossas noções de cultura e música brasileiras, nos ajuda a ver a problemática do campo dos estudos históricos da música popular, e nos ensina a dar voz ao público e aos produtores daquelas músicas que costumamos deixar de lado porque problematizam nossas categorias de audição.
Quem se acostumou a acompanhar a verve de Idelber Avelar em seu blog O biscoito fino e a massa sabe que se trata de um dos importantes intelectuais brasileiros da atualidade, com um raciocínio muito fino a articular análise cultural com uma postura política radical no melhor sentido da palavra. O volume com seus textos, lançado pela UFMG, do qual desconfio que este capítulo é o mais importante, tem o grande mérito de trazer as ideias de Avelar para nossa pobre bibliografia em português sobre o assunto – um fator que pode ter o condão de potencializar os estudos sobre estes temas ainda obscuros no Brasil.
Veja o vídeo da principal canção analisada no texto:
Comentários
10 respostas para “Idelber Avelar: Sepultura e a codificação do nacional no Heavy Metal brasileiro”
Nas gravações de Ratamahatta, o Sepultura convidou o percussista Naná Vasconcelos para que participasse (e conferisse alguma seriedade ao projeto). O convite foi educadamente declinado por Naná, que em momento algum se manifestou sobre a musicalidade (ou falta de) da banda Sepultura. O percussionista agiu de forma excludente? Pouco provável. À época ele costumava trabalhar com músicos obscuros de todas as partes do mundo. Com todo respeito, alegar que o rock pop brasileiro dos anos 80 foi deliberadamente excluído pelos músicos que vieram antes parece ser um pouco ingênuo. Além de ser uma idéia que vai ao encontro dos interesses do mercado, que pretende a todo custo que o pop rock brasileiro dos anos 80 tenha a mesma credibilidade que a música feita anteriormente por Chico, Caetano, Milton, etc…
Sem debate? Nenhum argumento? Ok, vamos ideologizar a música brasileira como já ideologizamos o ensino. Todo mundo sabe quem ganha com a constante divulgação de músicas medíocres pela mídia. Só resta saber quais estudiosos se prestam a fornecer embasamento teórico a essas falácias comercialóides. Às vezes o sujeito pensa estar sendo libertário, quando na verdade, é só uma marionete inconsciente mão de algum ceo engravatado que nunca ouviu falar em Camargo Guarnieri, mas aceita apoio (de quem quer que seja) pra vender porcarias como Sepultura. Com professores dizendo que aquilo é música, fica mais fácil comercializar pras novas gerações. Grande abraço e até a próxima.
Ah, desculpa, não vi que o primeiro comentário havia sido publicado. Até.
Pedro, tua historinha do CEO vendendo Sepultura é bonitinha, mas falsa. Se você ler o artigo (ou qualquer coisa sobre o assunto), vai ver que o Sepultura e outras bandas de Metal construíram seus caminhos em gravadoras independentes, de fundo de quintal.
Fico pensando – você está tentando dizer que se alguém conhece Guarnieri vai achar que Sepultura não é música? Nada mais falso.
Veja bem, o fato de uma banda pertencer a uma gravadora independente não é, nem nunca foi garantia de qualidade ou mesmo de musicalidade. Se você me perguntar o que vem a ser “qualidade”, certamente eu não teria uma resposta, mas se qualquer urro bestializado passa por música com a complacência dos ditos “estudiosos”, então vivemos a era da MPBQC: música popular brasileira qualquer coisa. E, no fundo, é isso mesmo. Um processo que já vem dos anos 90 e a tendência é a coisa degringolar cada vez mais (e com a anuência daqueles que deveriam ser os primeiros a defender a busca pela qualidade). Inquietação? Mudança? Sepultura nunca trouxe nada disso e, na verdade, se valeu da precariedade do sistema de ensino brasileiro pra vender montanhas de cds que hoje custam menos de um real a unidade em qualquer sebo furreba de curitiba. Mas é claro que sempre vai haver quem defenda e, pior, se valendo dos argumentos mais esdrúxulos.
Aliás, esses tempos li um artigo do cara do sepultura no site yahoo. Francamente eu não consegui chegar a uma conclusão sobre o que era a pior: a maneira como o cara expunha suas “idéias” ou os erros gramaticias gritantes que pulavam na minha cara a cada parágrafo. Ele tava, a propósito, tentando enaltecer o Villa Lobos, mas a pobreza discursiva do cara derrotou qualquer possibilidade de ele conseguir escrever algo com alguma coerência. Villa não precisa do aval de nenhum mané. Sua obra fala por si, mas é claro que um sujeito como esse do Sepultura vai tentar de todo modo se associar à obra de alguém como Villa. Só falta o cara do sepultura aprender a pensar e se expressar com alguma clareza. Os textos só não eram mais simplórios que a própria música do Sepultura, banda que conseguiu elevar o arroto a níveis artísticos aceitáveis pela sensibilidade da mídia.
No entendimento do Avelar, a música do sepultura se afirma na medida em que busca um afastamento do que ele chamou de “MPB normativa”. Sinceramente, não vejo porque o sepultura ou qualquer banda dos anos 80 precise acusar as gerações mpb dos anos 50, 60 e 70 de elitismo ou sei lá o quê. O público dos anos 80 possuía necessidades diferentes dos públicos anteriores. O mesmo se verifica hoje. Percebo uma certa má vontade de alguns setores da mídia com caras como Caetano e Chico. Não sei se aquela geração ideologizou a MPB, mas com certeza ela está sendo ideologizada hoje, todo dia nas MTVs da vida, nas FMs redundantes, na imprensa musical, em todo lugar. Música propriamente dita já não vem mais ao caso. Só importam bandeiras hasteadas ao vento, contra tudo e contra todos. O resto é silêncio.
Pedro, o seu próprio comentário já responde a necessidade deste artigo, e de contestar essa visão tradicional do que é Musica Brasileira, um pais do nosso tamanho e com a nossa formação étnica, não pode considerar arte nacional só meia dúzia de estilos ditados por duas cidades, e essa tua idéia do Camargo Guarnieri, me desculpe, mas está ultrapassada a pelo menos uns 70 anos viu.
Em termos comerciais e de mídia, quem tem a mídia a seu favor é o Chico Buarque e o Caetano Veloso viu, os dois são produtos da indústria cultural, alias toda a MPB dos anos 60 é um produto da Indústria Cultural Brasileira, o Rock Brasileiro também é produto dela, mas o Metal Brasileiro (principalmente o cantado em português) sempre foi cultura de nicho, e sempre esteve a margem do que se chama de Cultura Brasileira, nunca teve o apoio da mídia que você alega ter, a sua própria falta de conhecimento do estilo é uma demonstração disso.
E já que você acusa o metal de “lixo comercialoide”, só por que uma coisa é bem sucedida comercialmente (O Chico vende bem, seja com musica seja com literatura) ela não é necessariamente ruim, alias considero até este sistema de juízo de valor ultrapassado, não existe arte boa ou ruim, existe função e contesto social isso sim.
Olá André graça e paz…
Gostei do Tema abordado- cara, por ser híbrida nunca me vi retratada pelos códigos da MPB, ‘apenas’, ‘apenas’ em mínimos momentos…
Abração André
itala tosin
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