O compositor Arnold Schoenberg (1874-1951) é um dos mais importantes do século XX, pela influência que exerceu sobre as ideias e sobre as composições musicais. Nesta aula da disciplina de História da Música V da UNESPAR estamos estudando o início de sua carreira até a escrita de suas primeiras obras dodecafônicas, no início da década de 1920.
Século XIX – aprendendo a compor
Um fator muito importante a considerar quando falamos da carreira de Schoenberg é o fato de que ele não estudou composição musical formalmente. Ele não frequentou nenhum dos muitos bons cursos de teoria e de composição musical espalhados por conservatórios europeus. Aprendeu composição de maneira autodidata e, no máximo, recebeu conselhos de amigos com estudo formal, principalmente Alexander Zemlinsky, de quem se tornou cunhado.
Para os detalhes da carreira de Schoenberg discutidos neste post a referência é o verbete escrito por Oliver Neighbour para The New Grove Dictionary of Music and Musicians.
Arnold Schoenberg nasceu em 1874 num gueto judeu de Viena. Seu pai foi comerciante, mantendo uma pequena sapataria. Sua educação musical começou com aulas de violino aos 8 anos, e logo ele começou a compor por conta própria. As primeiras composições autodidatas eram duos de violino, baseados no repertório do século XVIII e XIX que ele estudava com o professor. Ele também transcrevia para dois violinos tudo a que tinha acesso por partitura: de melodias de ópera a música de banda militar. Mais tarde conheceu um colega do colégio que tocava viola, e passou a compor trios para dois violinos e viola.
Quando seu pai morreu de pneumonia, em 1889, a família passou aperto. Schoenberg teve que largar os estudos e assumiu um emprego de escriturário em um pequeno banco, no qual trabalhou por 5 anos. Neste período, não abandonou a música, a literatura e a filosofia, que cultivava durante as tardes, após a saída do trabalho. Sua vida cultural tinha a companhia e o incentivo de dois amigos, com os quais chegou a montar um quarteto de cordas. Um desses amigos – Oskar Adler, ensinou a Schoenberg o que sabia de harmonia. Sobre formas musicais ele aprendeu o que podia pesquisar em enciclopédias. Neste período os amigos pouco foram a concertos, conhecendo basicamente a música que podiam tocar.
Logo Schoenberg passou a tocar em uma orquestra amadora, de um punhado de músicos, regida por Zemlinsky – um destacado aluno do Conservatório de Viena e compositor promissor, que chegou a atrair a atenção de Brahms. Eles se tornaram amigos, e Zemlinsky foi uma espécie de professor para Schoenberg, embora afirmasse não ter ensinado composição ao amigo. De fato, embora seja difícil precisar o que ambos estudavam nesta época, é certo que mostravam composições um ao outro, e que Schoenberg levava muito em conta os conselhos do amigo em suas criações.
Foi com base nos conselhos de Zemlinsky e acatando suas sugestões e alterações que Schoenberg concluiu seu Quarteto em Ré Maior, em 1897. Zemlinsky era membro do conselho da Wiener Tonkünstlerverein – uma espécie de Sociedade Pró-Música da cidade, fundada em 1885. Foi por indicação dele que a sociedade incluiu o Quarteto de Schoenberg em sua programação de concertos semanais, estreando-o em março de 1888. A peça foi bem recebida, e programada para ser novamente executada na próxima temporada. Foi a única composição bem sucedida de Schoenberg durante muito tempo: a Sociedade recusou apresentar o sexteto Verklärte Nacht em 1899, e as canções op. 1-3 apresentadas em 1900 receberam protestos do público. O cromatismo que Schoenberg vinha desenvolvendo nessas composições não foi bem recebido. Durante anos quase nada de suas obras foi apresentada em público. Schoenberg conseguiu trabalhar com música regendo corais de sociedades operárias ligadas ao Partido Social Democrata e orquestrando operetas sob encomenda.
1900 a 1911: profissionalização
Entre março de 1900 e abril de 1901 ele dedicou as horas vagas à composição do ciclo dos Gurre Lieder, cuja orquestração não conseguia terminar por ter de se dedicar aos trabalhos remunerados. Ele seria “salvo” desses trabalhos corriqueiros pelo apoio de Richard Strauss, a quem mostrou trechos dos Gurre Lieder e do poema sinfônico que estava compondo – Pelleas und Melisande – em 1902. O interesse de Strauss nestas obras levou a duas indicações essenciais para a carreira de Schoenberg. Por recomendação de Strauss o jovem compositor recebeu o Prêmio Liszt (Liszt Stipendium) e conseguiu trabalho como professor no Conservatório Stern – uma bolsa e um emprego que o permitiram se dedicar mais à composição e concluir suas importantes obras.
O contato com Strauss aconteceu em Berlim, para onde Schoenberg se mudou em dezembro de 1901. Ele estava recém casado com Mathilde, a irmã de Zemlinsky, e foi para a cidade alemã assumir um emprego no cabaré Überbrettl. Strauss tinha se tornado um sucesso unânime após a estréia de sua ópera Salomé em 1902, por isso seu apoio era tão importante. Schoenberg voltaria para Viena em julho de 1903, já com a partitura completa de Pelleas und Melisande.
O Überbrettl foi um cabaré literário aberto em Berlim em 1901 pelo escritor e editor Ernst von Wolzogen. Ele se inspirou no modelo francês do cabaré montmatroise, principalmente em Le chat noir – cabaré fundado em Paris em 1881 que deu origem também a uma revista semanal de mesmo nome. O estabelecimento é considerado o primeiro cabaré alemão. A intenção de Wolzogen era dar-lhe um caráter mais sério, mas o que garantia maior sucesso eram as produções mais leves. A programação do café atraía a presença de intelectuais importantes no mundo das letras da cidade, como Wedekind, Morgenstern e Dehmel. Durante esse período Schoenberg tentou algumas composições no estilo proposto por Wolzogen – de usar elementos do mercado de entretenimento dando-lhes maior ousadia artística. Provavelmente a canção Nachwangler foi a única dessas peças a ser apresentada em público – ou ao menos foi a única para a qual Schoenberg chegou a escrever a instrumentação completa.
Quando retornou a Viena, Schoenberg deu cursos de Harmonia e Contraponto por uma única temporada em salas disponibilizadas nas férias de um colégio de moças. Nesta época ele morava na casa do agora cunhado Zemlinsky, que deu cursos de Forma Musical e de Orquestração na mesma “oficina”. Alguns dos alunos desse curso continuaram a ter aulas particulares com Schoenberg, grupo que foi acrescido por alunos da classe de História da Música de Guido Adler na Universidade de Viena. No segundo semestre de 1904, o grupo de alunos de Schoenberg foi acrescido de dois novos membros: Anton Webern e Alban Berg, que se encaminhariam para a composição seguindo fielmente os passos do novo professor, de quem se tornaram leais seguidores e amigos por toda a vida.
Schoenberg se mantinha financeiramente com o pagamento dessas aulas, embora tenha dado aula de graça para Berg, cuja família não podia pagar. Também ajudou financeiramente o apoio de Mahler, que se interessou pela música de Schoenberg ao ver um ensaio que seu cunhado estava fazendo de Verklärte Nacht com um quarteto que havia montado para tal. Mahler nunca chegou a conhecer Schoenberg pessoalmente, mas deu decisivo apoio à distância. O público de concertos de Viena nesta época era muito conservador e nada receptivo à música (ou qualquer arte) moderna. Schoenberg e outros artistas da época só podiam viabilizar suas produções por meio de sociedades artísticas mantidas com a colaboração de entusiastas. Uma dessas foi criada com o nome de Vereinigung Schaffender Tonkünstler, que conseguiu manter Mahler como presidente honorário. A sociedade durou apenas pela temporada de 1904/1905, e executou obras de Mahler, Strauss e Zemlinsky. Sobreviveu apenas o suficiente para estrear o poema sinfônico Pelleas und Melisande de Schoenberg. Segundo Oliver Neighbour, autor do verbete do Grove’s, “a orquestra estava pouco à vontade e a recepção foi fria”.
A carreira de Schoenberg seguiria esse padrão nos anos seguintes. O trabalho duro dando aulas não seria suficiente para fazê-lo superar as dificuldades financeiras, e ele chegou a precisar de ajuda para pagar o aluguel (o que foi conseguido com apelos de Berg a apoiadores, sem que seu professor soubesse). Ele passava a maior parte do verão compondo, cada nova obra saindo mais dissonante. Segundo Neighbour, Mahler defendeu em público suas novas estreias (Quarteto nº 1 e Sinfonia de Câmera, em 1907) enquanto confessava em privado não conseguir entender o desenvolvimento do jovem compositor, embora não perdesse a fé nele. As primeiras obras atonais do compositor (O livro dos jardins suspensos e as Peças para piano op. 11) foram estreadas em 1910, e, nas palavras do autor do verbete, encontraram “incompreensão quase universal”.
Esses anos foram de crise no estilo musical de Schoenberg e também em sua vida doméstica. Ele conheceu os pintores Oskar Kokoschka e Richard Gerstl, de quem se tornou amigo e, em 1908 começou a pintar seriamente. Schoenberg e sua esposa Mathilde se tornaram alunos de Gerstl. No verão deste ano, Mathilde e Gerstl se tornaram amantes, e ela resolveu deixar o marido para viver com ele. Meses depois ela foi persuadida a voltar pra casa pelo bem dos dois filhos pequenos do casal, decisão que levou Gerstl a cometer suicídio. Em 1910, Schoenberg organizou uma exposição individual com suas pinturas, que chamou a atenção do pintor Vassily Kandinsky. Ambos se tornaram amigos, e Kandinsky passou a admirar também a obra musical de Schoenberg e ser influenciado por suas ideias. Schoenberg chegou a participar com suas pinturas em uma exposição do grupo Der Blaue Reiter, criado por Kandinsky. Em anos posteriores Schoenberg continuou pintando ocasionalmente, mas a pintura não continuou a ocupar lugar central em seus interesses como nessa época.
Nos anos anteriores, Schoenberg manteve uma produção estável de composições, que culminou com as obras-primas concluídas em 1909: as Peças para piano op. 11, as Cinco peças orquestrais e o monodrama Erwartung. Erwartung é uma ópera para uma só personagem, com um ato, duração de cerca de 30 minutos. A obra retrata as divagações mentais de uma mulher que se encontra em um bosque, em um momento de agitação de espírito. A composição de Schoenberg se baseou no texto da poetisa Marie Pappenheim. A partitura de Schoenberg exige uma orquestra pesada: madeiras a 4 (quartetos de flautas, oboés, clarinetes e fagotes), grandes grupos de metais e percussão, além das cordas. É uma obra tão difícil de ensaiar, que levou muito tempo para poder ser executada. A estreia foi com regência de Zemlinsky, em 1924, durante o Festival da Sociedade Internacional de Música Nova, em Praga na então Tchecoslováquia.
Como bom modernista, Schoenberg seguia sendo admirado por amigos e alunos, geralmente ligados a círculos modernistas de música, literatura ou pintura. Mas suas obras tinham pouca ou nenhuma divulgação, eram difíceis de ser estreadas, as partituras seguiam inéditas e, no caso de conseguir alguma apresentação, não tinham boa recepção do público.
Além desses problemas, nos anos de 1910 e 1911 Schoenberg parou um pouco com a composição de novas obras para se dedicar a duas tarefas: escrever o livro Harmonielehre (publicado em 1911) e terminar a orquestração dos Gurre Lieder, que já se arrastava havia quase uma década. Além disso, o compositor tentou se inscrever para o cargo de professor assistente em composição e teoria na Real-Imperial Academia de Música e Artes Dramáticas de Viena, mas, embora tenha sido aprovado na seleção, sua nomeação foi contestada no parlamento com discursos anti semitas.
1911 a 1914: reconhecimento artístico em Berlim
Com dificuldade de se manter financeiramente em Viena, Schoenberg decide tentar novamente um emprego em Berlim, para onde se mudou em 1911. Na capital alemã a sorte de Schoenberg começou a mudar pra melhor rapidamente. Sua fama se ampliava, o público já ficava mais receptivo às suas obras mais antigas e suas obras mais recentes, muitas ainda inéditas, começavam a despertar curiosidade.
Em Berlim Schoenberg compôs o Pierrot Lunaire, durante o verão de 1912. A peça foi estreada sob regência do compositor em outubro, e seguiu para uma turnê por 11 cidades na Alemanha e na Áustria. Enquanto isso, outros regentes começaram a colocar suas obras nos programas: as Cinco peças orquestrais foram estreadas em Londres por Henry Wood e os Gurre Lieder em Viena por Schreker. De 1912 até a irrupção da Guerra Schoenberg também iniciou uma carreira de regente. Embora sem experiência, conseguiu postos por indicação de Zemlinsky, e chegou a reger suas obras sinfônicas em várias cidades. Suas preocupações financeiras também diminuíram por conseguir um rico patrocinador.
Pierrot Lunaire é provavelmente a obra mais importante e mais impactante de Schoenberg. Suas obras foram tão significativas e influentes que isso é bem difícil de determinar. Mas essa peça foi a primeira que Schoenberg conseguiu compor em prazo relativamente curto, estrear logo em seguida e apresentar em diversos lugares para audiências atentas. A influência da peça sobre outros artistas e compositores nas décadas seguintes é difícil de dimensionar.
Nesta obra Schonberg experimentou e criou diversas inovações muito significativas para a música modernista, o que ajuda a explicar seu impacto. A peça constitui um ciclo de canções sobre 21 poemas do francês René Char traduzidas para o alemão por Otto Hartleben. Nesta fase da sua atividade composicional, assim como já tinha sido em Erwartung e em Pelleas und Melisande, Schonberg se mostra um compositor especialmente frutífero sob inspiração de textos literários.
Pierrot Lunaire também se beneficiou de um aprendizado prático do compositor: a repulsa dos meios tradicionais à música moderna tornava muito difícil estrear obras para grandes conjuntos instrumentais. Para que sua composição fosse mais viável, Schoenberg escolheu uma formação econômica: um cantor/recitante, um violinista (que toca viola em algumas peças), um violoncelista, um flautista (que alterna com o piccolo), um clarinetista (que também toca clarone) e um pianista. Além do próprio compositor que atuava como regente, um concerto do Pierrot Lunaire precisava de apenas 7 pessoas atuando para ser viabilizado. Deslocando-se de trem, era mais fácil fazer uma turnê com várias apresentações. O interesse de um público variado de músicos, escritores, artistas plásticos e intelectuais garantiu o relativo sucesso da turnê.
É importante ressaltar que, embora use 6 músicos, dificilmente todos tocam ao mesmo tempo. Em geral Schoenberg adotou combinações menores, de voz + 3 ou 4 instrumentos em cada peça. A escolha da instrumentação foi feita para ressaltar aspectos imagéticos do texto. A poesia simbolista escolhida como ponto de partida para a obra, é muito rica em imagens.
O vinho que meus olhos sorvem
A lua verte em longas ondas,
Que numa enorme enchente solvem
Os mudos horizontes
.
Desejos pérfidos se escondem
No filtro do luar que chove
O vinho que meus olhos sorvem
A lua verte em longas ondas
.
O poeta no silêncio absorto,
Absinto santamente absorve
E o céu é seu até que cai,
Olhar em alvo, gesto tonto,
Do vinho que meus olhos sorvem
O primeiro dos 3 vezes 7 poemas de Pierrot Lunaire, em tradução métrica do alemão de Otto Hartleben para o português por Augusto de Campos.
Esse é o primeiro poema, na fantástica tradução de Augusto de Campos, que respeita a métrica da poesia em alemão, o que permite que seja cantada com a mesma música. A tradução completa dos 21 poemas está no livro Música de invenção, publicada em 1998 pela editora Perspectiva.
Talvez a invenção mais evidente do compositor nesta peça seja o estilo de recitação, para o qual cunhou o termo alemão Sprechgesang (algo como “canto falado”). Embora a indicação seja de que a nota não deve ser cantada, mas falada, ela continua precisando respeitar a indicação de altura. Na partitura, isso aparece – já nas primeiras notas da voz – indicado por um “x” na haste das figuras.
A complexidade musical da obra não deixa dúvidas: embora sejam apenas 5 instrumentistas e uma voz, a peça precisa de muito ensaio e de um regente para funcionar. Isso fica perceptível já nos primeiros compassos: o piano começa apresentado um acorde de 5ª aumentada em arpejo descendentente (sol#-mi-dó) seguido de algo como um acorde diminuto com 9ª menor também em arpejo descendente (ré-sib-sol-dó#). Dois acordes que não estabelecem nenhuma relação tonal, algo que, se alguém tinha alguma dúvida é reforçado pelo violino que toca as notas fá# e ré# no mesmo compassos. As notas do violino não só não fazem parte dos acordes tocados pelo piano, como estabelecem um choque com elas (ré# do violino convive com ré e dó# do piano). Essas relações entre as notas estabelecem um tipo de estrutura que passou a ser reconhecido como música atonal.
O termo é sujeito a equívocos, pois sugere a inexistência de tonalidade musical. De fato, tonalidade no sentido clássico não há mais: não há hierarquias claras, um centro principal ou intercalação entre tensão e repouso. Está mais para uma tensão contínua. Schoenberg preferia pensar em música “pantonal”, ou seja, com todos os tons ao mesmo tempo.
Ao atentarmos para a instrumentação da peça, também podemos perceber que, ao mesmo tempo em que a melodia perde a referência da memória humana (difícil lembrar e cantarolar alguma coisa depois de ouvir a peça), o timbre torna-se um dos aspectos centrais.
Para trazer o timbre para o centro das atenções, Schoenberg até inventou uma técnica chamada melodia-de-timbres. Ou, em alemão: Klangfarbenmelodie. Podemos ver essa técnica em uso na introdução do quarto poema (Eine Blasse Washerin, que Augusto de Campos traduziu como “Lavadeira lívida”):
Os instrumentos (flauta, clarinete em lá e violino) tecem uma complexa trama, que na verdade vem de uma estrutura de acordes bem simples:
Pra quem já vinha escutando aqueles acordes atonais das primeiras peças, isso é bastante diatônico. Mas Schoenberg aproveita a simplicidade das notas para tratar com maior riqueza o timbre. Se fosse instrumentar de modo tradicional, o compositor daria as notas mais agudas de cada acorde para o mesmo instrumento, distribuindo assim sucessivamente a nota do meio e a nota mais grave. Seriam três melodias lineares, cada uma com seu timbre:
Mas, como se trata de Schoenberg, a distribuição não foi nada tradicional. Ele preferiu “espalhar” as notas dos acordes de modo irregular entre as vozes, como vimos na imagem dos primeiros compassos. O resultado é uma melodia-de-timbres, porque temos a tendência de escutar melhor a nota mais aguda de cada acorde. Como em cada aparição do acorde essa nota está em um instrumento diferente, o resultado é como se ouvíssemos uma melodia em que cada nota é apresentada com um timbre diferente da anterior:
O termo em alemão é mais sugestivo, pois o que chamamos de timbre é indicado como Klangfarben – “cores do som”. Ou seja, o termo usado por Schoenberg é literalmente “melodia de cores do som”.
Como pudemos perceber nesta parte da aula, a peça se destacou pela grande quantidade de inovações: harmônicas, formais, de instrumentação, entre outras. Coroou o período mais dinâmico da carreira de Schoenberg, quando a relação entre compor, apresentar as obras, ter público e ainda conseguir pagar as contas parecia apontar para um futuro promissor. Mas logo veio a Guerra, que ninguém esperava, e destruiu aquele mundo europeu que ficou conhecido como Belle Époque.
1914-1923: a Guerra, uma crise criativa e a invenção do dodecafonismo
Com o início da Guerra, Schoenberg precisou voltar a Viena, onde conseguiu uma casa cedida para morar. Ele acabou sendo alistado, mas nunca foi enviado para combate. Durante o período de treinamento, desenvolveu asma – doença que iria limitá-lo para o resto da vida.
Saindo do serviço militar, teve dificuldade de retomar a composição. Estava planejando uma grande obra religiosa, o oratório A escada de Jacó, mas embora tenha concluído o texto da obra, quase não conseguiu fazer nada da música. Sua atividade profissional girou em torno das aulas, que com o fim da guerra começaram a ficar mais frequentadas, e, principalmente, com a organização de uma Sociedade Musical dedicada à performance cuidadosa de obras modernas.
As dificuldades econômicas da Guerra tornavam inviável a montagem de concertos orquestrais, mas a Verein für musikalische Privataufführungen funcionou entre fevereiro de 1919 e dezembro de 1921 realizando concertos com reduções para piano ou conjunto de câmera. Em 117 concertos (quase 40 por ano), a Sociedade apresentou 154 obras em 353 execuções. A repetição da mesma obra várias vezes era importante para a filosofia de apresentar as obras com a melhor preparação e exaustivos ensaios. Schoenberg regeu a maioria dos concertos, e seus alunos regeram outra parte. As atividades da Sociedade contribuíram tanto para a divulgação e conhecimento da música moderna, quanto para a reputação da obra de Schoenberg e de seus alunos, bem como para sua fama como regente.
Entre 1920 e 1923 Schoenberg deu novo rumo a seu trabalho composicional, escrevendo as primeiras obras dodecafônicas: os Klavierstücke op. 23, a Serenata op. 24 e a Suíte para piano op. 25. Uma coisa interessante a observar é que, no período anterior, classificado posteriormente como fase do atonalismo livre, as obras de Schoenberg eram no geral compostas a partir do impulso de textos literários. A forma ou a ideia do texto demandava soluções específicas de forma musical ou tratamento harmônico e timbrístico. Schoenberg não tinha encontrado um modo propriamente musical de organizar suas obras, mas parece que buscava por isso.
Essa organização do som sem referências literárias Schoenberg encontrou a partir do desenvolvimento do que ficou conhecido como técnica dodecafônica ou “música dos 12 sons” (Zwölftonmusik).
O dodecafonismo já foi muitas vezes erroneamente descrito como um tipo de música em que todas as 12 notas musicais têm que ser ouvidas antes que alguma se repita. De fato, não é assim que acontece na música dodecafônica.
Essa música se baseia no princípio serial, ou seja, parte de uma série de 12 sons ou série dodecafônica. A criação da série a partir da qual será composta a obra é a primeira tarefa a que o compositor se propõe. De fato, a série parte do pressuposto de ser composta de 12 diferentes notas (todas as que existem no sistema de afinação tradicional europeu). Na série não há repetição.
Seria simples, então, identificar a série dodecafônica numa partitura. As primeiras 12 notas seriam essa série sem repetições. Podemos tentar fazer isso na Suite para piano op. 25, a primeira das peças dodecafônicas que Schoenberg concluiu, em 1921.
Podemos observar que o esquema não se aplica, pois a primeira nota da mão esquerda no segundo compasso é um réb, o que seria uma repetição da última nota que a mão direita tocou no compasso anterior.
De fato, o princípio que passou a organizar a composição de Schoenberg deriva da lógica da tradição clássica: o desenvolvimento temático. Justamente por isso Schoenberg via sua música como uma continuação lógica da tradição que vinha de Bach, e passava por Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Mendelssohn, Brahms – culminando com seu herói Gustav Mahler (sem deixar de tentar resolver os problemas composicionais legados por Wagner).
Paul Griffiths, seu clássico livro A música moderna: uma história concisa e ilustrada. De Debussy a Boulez. já propõe essa chave interpretativa. Ele apresenta a música modernista do início do século XX como dividia em duas correntes. Uma, liderada por Schoenberg, continua a lógica da tradição clássica germânica: predominância das estruturas harmônicas, desenvolvimento temático, formas seccionadas. A outra, sediada em Paris busca a renovação fora da tradição tonal.
Assim, de fato perde o sentido chamar Schoneberg de atonal. Seria mais coerente designá-lo como hipertonal, uma vez que ele decide levar o tonalismo às últimas consequências. Pra resumir, o dodecafonismo é como se Schoenberg tivesse decidido fazer o mesmo tipo de processo composicional iniciado por Bach no século XVIII, mas ao invés de trabalhar com temas de 3 ou 4 notas, decidiu que seus temas teriam TODAS AS NOTAS QUE EXISTEM. Ou seja, Schoenberg compõe desenvolvendo temas musicais, mas o seu tema não é uma ideia simples e passível de derivações reconhecíveis. A série dodecafônica é um tema a ser desenvolvimento na composição, mas é o tema mais complexo possível de ser concebido no sistema diatônico de alturas.
Voltando ao trecho da partitura da imagem acima, podemos perceber que Schoenberg está compondo como Bach faria numa peça para cravo. O tema está na mão direita, que apresenta de fato uma série completa de 12 notas. O que a mão esquerda está tocando já é uma derivação da série original.
No exemplo 4 vemos a série transcrita sem as mudanças de altura que Schoenberg usa ao apresentá-la na mão direita do piano. Aqui está a série como ideia original. Podemos notar que, para a composição da série Schoenberg procurou não usar referências tonais. De fato, há os intervalos de quarta justa réb-solb e mib-láb que poderiam sugerir resolução de dominante tônica, mas Schoenberg os trata na peça de modo descontínuo, pois prefere organizar a série em 3 blocos de 4 notas, separando os sons que poderiam sugerir resolução tonal.
Antes de continuar falando da técnica composicional, é melhor ouvirmos a obra:
Depois de criar esse “temão” gigantesco com todas as notas que existem no sistema, a chamada série dodecafônica, Schoenberg dá uma olhada no retrovisor, e retoma os procedimentos iniciados por Bach. Aliás, não é à toa que a peça de Schoenberg se chama Suíte e tem como movimentos: 1. Preludio; 2. Gavota; 3. Musete; 4. Intermezzo; 5. Minueto – Trio – Minueto; 6. Giga. Quem notou a semelhança com as suítes de Bach acertou em cheio. E era proposital.
Assim como os recursos que Bach usava para desenvolver seus temas singelos, Schoenberg aplicou à série os processos de inversão (reproduzir uma sequência de notas mudando a direção dos intervalos, o que era ascendente passa a descendente e vice-versa) e retorgradação (usar a sequência das notas de trás para frente). Com isso, aplicando os dois procedimentos, passariam a existir quatro formas da série: Original, Invertida, Retrogradada e Invertida-Retrogradada.
Além dos processos de inversão e retrogradação, outro procedimento comum é fazer a transposição das ideias. Bach super faria isso, pegar uma ideia como si-ré-dó e reapresentá-la como mi-sol-fá, e assim por diante. Schoenberg era um pouco mais radical, como sabemos, e pensou logo que as 4 formas da série tinham, cada uma a possibilidade de transposição para todos os 12 tons que existem no sistema. Assim, resultam 48 apresentações da série.
Agora que sabemos as manhas dos processos de manipulação da série dodecafônica, ou melhor, como Schoenberg fazia pra desenvolver esse “temão” de 12 notas, podemos voltar para a partitura da Suíte mostrada acima, e notar que a mão esquerda do piano está na verdade apresentando outra forma da série. O que acontece na mão esquerda é uma transposição da série original. A série começa na mão direita com mi-fá-sol-réb e não mão esquerda o que aparece é a mesma coisa, só que transposto: sib-dób-réb-sol.
Bach também super faria isso. Aliás, era o princípio básico, por exemplo, dos cânones barrocos e de várias formas imitativas, como a Fuga: apresente um tema, e logo em seguida faça ele aparecer na dominante: uma quinta justa acima. Como se trata de Schoenberg, nada desse negócio de apresentar tema uma quinta acima. Ele já vai logo apresentando UM TRÍTONO ACIMA (ou abaixo, o que harmonicamente dá na mesma).
Seria um exercício muito legal pegar a partitura e ficar procurando as formas da série que ele usa. E eu já fiz isso com algumas turmas. Na verdade, Schoenberg leva bem a sério as próprias regras: cada nota que aparece pode ser justificada, ele não usa nada que não venha mesmo de uma das formas da série que ele criou e se propôs usar como tema na sua composição.
Conclusão
O objetivo dessa aula para por aqui. Em outras aulas devemos ver como o dodecafonismo foi usado por outros compositores. Já estudamos como compositores brasileiros usaram essa técnica, e como isso foi discutido no país. Também é outro assunto saber o que aconteceu com Schoenberg depois de 1923.
Não é difícil imaginar que ele, sendo judeu e vanguardista acabou sendo perseguido na Europa nazista. Teve que emigrar para os Estados Unidos onde encontrou uma realidade musical muito diferente (também estudaremos isso em outras aulas).
Uma das coisas que ele fez para o público americano foi tentar sintetizar suas ideias (e a tradição musical germânica, da qual ele se considerava uma consequência natural) de maneira mais básica. Foi nos Estados Unidos, em 1950, que ele publicou um conjunto de reflexões sobre sua arte e seus processos criativos. Trata-se do livro entitulado Style and Idea. Não é um livro escrito num fôlego, mas uma reunião de reflexões ao longo da vida, desenvolvidas em artigos e conferências. Em uma delas, o título foi “Música nova, música antiquada, estilo e ideia” (eu que tô traduzindo). A primeira versão desse texto foi um manuscrito em alemão, de 1933, para uma palestra que o compositor deu em Praga. No mesmo ano, essa palestra já foi dada em inglês em Boston. O texto que foi para o livro foi uma revisão para uma palestra proferida em 1946 na Universidade de Chicago.
Nesse texto Schoenberg discute a obrigação que os compositores que se levam a sério deviam ter: levar uma ideia até às últimas consequências. Parece que foi essa filosofia que guiou mesmo sua vida artística, como pudemos ver nos exemplos dessa aula. Lá pelas tantas ela lança uma frase bombástica:
Ninguém deve ceder a outras limitações além daquelas que são decorrentes dos limites de seu talento. Nenhum violinista deveria tocar, mesmo que ocasionalmente, com a afinação errada para agradar os gostos musicais mais baixos, nenhum acrobata daria passos na corda-bamba em direção errada apenas por prazer ou por apelo popular, nenhum mestre de xadrez faria movimentos que todos pudessem prever apenas para ser agradável (e assim permitir que seu oponente ganhe), nenhum matemático inventaria algo novo em matemática apenas para lisonjear as massas que não possuem o modo matemático específico de pensar, e da mesma maneira, nenhum artista, nenhum poeta, nenhum filósofo e nenhum músico cujo pensamento ocorra na esfera mais alta degeneraria em vulgaridade, a fim de obedecer a um slogan como “arte para todos”. Porque se é arte não é para todos, e se é para todos, não é arte.
A tradução é minha, o grifo também. Mas a dica do trecho grifado apareceu no livro de Alex Ross, O resto é ruído: escutando o século XX. A referência completa do texto de Schoenberg:
SCHOENBERG, Arnold. “New Music, Outmoded Music, Style and Idea” (1946) in Style and Idea. Selected Writings. University of California Press, 2010. p. 113-124.
História da Música V
Este post faz parte de uma série que estou fazendo para a disciplina de História da Música V, na UNESPAR. A lista completa das postagens será atualizada à medida das publicações: