um dos principais estudiosos do pensamento de Mário de Andrade lançou um livro importante. Aproveitando a memória dos 70 anos da morte do escritor, o livro saiu no fim de 2015. Trata-se do livro de Eduardo Jardim, Eu sou trezentos: Mário de Andrade, vida e obra.
Antes de analisar a obra, podemos dizer que ao sair ela já garantiu um espaço importantíssimo na cena editorial. Simplesmente não havia uma biografia de Mário de Andrade disponível como primeira leitura para quem quer estudar o pensador modernista.
Estudos sobre Mário de Andrade
Certamente já havia um bom livro introdutório, publicado poucos anos atrás pelo selo Claro Enigma. De olho em Mário de Andrade: uma descoberta intelectual e sentimental do Brasil, de André Botelho, não é uma biografia. Trata-se de uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade, focado principalmente no aspecto da interpretação que o escritor modernista fez da cultura brasileira.
Havia, também, claro, outras biografias, todas já antigas e esgotadas. Uma escrita por Oneyda Alvarenga (Mário de Andrade, um pouco, 1974). Outra por Paulo Duarte (Mário de Andrade por ele mesmo, 1971). Ambas surgidas a partir da amizade pessoal e convivência com o escritor. Há ainda a escrita por Telê Porto Ancona Lopes (Mário de Andrade: ramais e caminho, 1972) a partir da documentação do próprio escritor depositada no IEB-USP. Este trabalho foi a base de uma vasta série de estudos que essa professora coordenaria sobre a obra do autor nos anos seguintes.
Além disso, muitas teses, dissertações, artigos, capítulos de livros, estudos monográficos sobre um ou outro aspecto da obra do escritor. Muitos trabalhos importantíssimos. Mas persistia a mesma dificuldade: um estudante não entraria numa livraria ou biblioteca e sairia com um estudo geral do autor e sua obra que servisse como ponto de partida.
Eduardo Jardim
O livro de Eduardo Jardim chegou então como uma grata novidade. Antes mesmo de abrir o livro já era possível saudá-lo. Era uma lacuna importante no mercado editorial. Não dava pra continuar assim, sem um trabalho sério sobre um dos nossos mais importantes pensadores.
O nome de Eduardo Jardim também empresta seriedade à obra. Ele já havia publicado pelo menos dois livros nos quais Mário de Andrade recebia importantes estudos. O primeiro, saiu na década de 1970, na mesma leva dos comentados há pouco. Era um estudo sobre a noção de cultura brasileira no modernismo, e apresentava Mário de Andrade como um importante líder de escola. Sua noção de brasilidade concorreria com as do verde-amarelismo e do movimento antropofágico, capitaneados pelos colegas Menotti del Picchia e Oswald de Andrade. Trata-se do livro A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica, resultado da tese de doutorado do autor, publicada com o nome de Eduardo Jardim de Moraes.
Mais recente foi o livro Mário de Andrade: a morte do poeta, publicado em 2005, já com o nome de Eduardo Jardim. Este livro analisou o período de Mário de Andrade no Rio de Janeiro. Um período que Moacir Werneck de Castro também já tinha analisado a partir de sua convivência com o escritor, no livro Mário de Andrade: exílio no Rio, de 1988.
Ou seja, poucas pessoas no Brasil estavam habilitadas a escrever uma biografia de Mário de Andrade. Eduardo Jardim foi o único que se apresentou para a tarefa. Só por isso já merece todos os elogios.
A obra de Mário de Andrade
Talvez se possa dizer que o forte de Eduardo Jardim e de sua biografia de Mário de Andrade é o conhecimento da obra do escritor. A obra literária, publicada (porque Mário de Andrade teve muitos outros tipos de obra, como o próprio título da biografia ressalta). Romance, poesia, conto. E também correspondência. Acho que isso é a principal documentação usada por Eduardo Jardim. Tem também, claro, um profundo estudo da bibliografia existente (aqueles trabalhos antigos que mencionei antes e mais um monte de trabalho especializado recente).
Por toda parte do livro é central na discussão a produção do autor. Suas obras literárias são lidas como obras literárias, como testemunho de memória pessoal, como síntese do tempo, como posicionamento nos embates. Acho que é muito bem feito isso no livro do Eduardo Jardim, e não pode, mesmo, ser diferente. Em Mário de Andrade não se separa a obra literária da vida do escritor e de sua ação no mundo – coisas que ele sempre misturou com intenção e intensidade.
Achei especialmente boas no livro as partes em que Eduardo Jardim lê momentos autobiográficos em poesias, contos e romances de Mário de Andrade. Muito instigante.
A vida do escritor
Mas acho que o principal foco desta biografia é a vida pessoal de Mário de Andrade. Sua origem familiar, sua formação escolar e intelectual. (Mas sobre formação intelectual continua sendo mais profundo o estudo de Telê Ancona Lopes). Seu relacionamento com familiares e amigos, principalmente na juventude e no início do movimento modernista. Mas também um enfoque muito detalhado da vida de Mário de Andrade durante sua estadia no Rio de Janeiro.
Aqui eu fiquei sentindo falta de uma documentação mais variada resultante de mais pesquisa em arquivo. Pedir demais, claro. Não acho que foi a pretensão de Eduardo Jardim fazer esse trabalho de historiador ou de jornalista-biógrafo. Ele deixou espaço para mais biografias que venham completar algumas coisas. Embora já seja razoavelmente detalhado o conhecimento da vida de Mário de Andrade que estava espalhado por outras publicações, e acho que o autor fez uma boa síntese. Talvez sem chegar a contribuições originais, mas é uma visão honesta da vida do escritor.
Pro meu gosto, um certo excesso de profundidade em questões sentimentais ou íntimas, como o relacionamento com a mãe, ou amor de Anita Malfatti, não correspondido. É um pouco constrangedor a gente ver detalhes assim da vida sentimental de um sujeito, mas paciência. Acho que não se faz biografia sem isso.
Ação intelectual e política
O ponto fraco do livro ficou mesmo a parte sobre a ação intelectual e política de Mário de Andrade. Aparece no trabalho uma razoável visão da ação do escritor no início do movimento modernista. Bom foco em seu período no Departamento de Cultura. Alguma coisa sobre seu trabalho no Ministério da Educação no tempo de Rio de Janeiro.
Mesmo nesses momentos chave o foco foi mais a maneira pessoal dele se engajar no trabalho, seus dilemas existenciais. Quase como se Eduardo Jardim fosse, como os outros biógrafos de Mário de Andrade, um amigo pessoal escrevendo sob o peso da convivência com o escritor. Sem conseguir se livrar de seu magnetismo pessoal. O distanciamento histórico poderia ter servido melhor ao biógrafo.
Para ter avançado nisso precisaria, sim, muito trabalho de arquivo. Tem muita coisa pra fazer quanto a isso. Ainda vamos levar alguns anos pra poder escrever coisa mais profunda que dê conta do Mário de Andrade homem de ação, burocrata, intelectual público.
Biografar sem monumentalizar, um desafio
Sobretudo, ainda não está sistematizada a produção de Mário de Andrade em periódicos (jornais, revistas, revistas especializadas) e isso faz muita falta. Acho que tem coisa pra se estudar também em documentos de arquivo que não sejam o arquivo pessoal do escritor. Lembrar que é sempre um risco trabalhar um personagem histórico somente a partir de seu arquivo pessoal. Esses arquivos são montados normalmente sob uma ótica monumentalizadora. Ou seja, restam perguntas que todo historiador tem que fazer diante de um arquivo tão completo quanto o que Mário de Andrade deixou de si. Quanto trabalho e recursos esse sujeito gastou para guardar e preservar tudo isso? Com que intenção? Como apreendê-lo sem tornar-se refém das leituras que ele procurou direcionar ao construir o próprio arquivo?
Essa é uma dificuldade para trabalhar com Mário de Andrade. Fica somada a uma camada de interpretação histórica muito favorável que foi sendo construída por amigos pessoais, alunos. E mesmo pelos desconhecidos que tiveram sempre o orgulho de se dizer influenciados por ele (segundo minha experiência de pesquisa, normalmente com bastante exagero).
Importância da obra
Numa avaliação geral: obra indispensável. Todo mundo vai ter que ler isso. Mas ainda dá pra fazer mais biografias. Sobretudo enfocar com mais cuidado a atuação institucional e a relação de Mário de Andrade com as artes visuais e a música. Por exemplo, porque são coisas que que não podem ficar diminuídas em comparação com sua relação com literatura. Senão continuará sendo uma visão muito limitada desse intelectual que fez questão de enfatizar que era “trezentos”.
Ainda tem umas centenas de Mário a serem investigadas por aí. O Eduardo Jardim não terminou tudo não. Mas pavimentou um ótimo caminho, nos abriu novas curiosidades.