Uma das maiores polêmicas da história da música foi o ataque do Pravda a Shostakovich. A seguir, alguns trechos do famoso editorial que iniciou a condenação do compositor pelo regime stalinista. O que vem citado a seguir são trechos mencionados no livro de Victor Seroff, publicado nos EUA em 1943. A tradução brasileira foi feita por Guilherme Figueiredo, publicada em 1945 pela editora O Cruzeiro, com prefácio de Mário de Andrade. Um artigo meu sobre este texto de Mário de Andrade está disponível aqui.
Ou seja, o que vem a seguir são trechos do artigo publicado no Pravda em 28 de janeiro de 1936, conforme publicados numa biografia publicada nos EUA e traduzida para o português. Alguns trechos citados em inglês também podem ser encontrados neste artigo.
O editorial do jornal comunista trouxe uma violenta condenação à ópera Lady Macbeth de Mtsensky, composta por Shostakovich entre 1930 e 32, sobre um romance de Nicolai Leskov. A obra foi estreada em janeiro de 1934, e já estava em cartaz havia 2 anos quando foi condenada politicamente. Neste meio tempo, a peça tinha conquistado boa reputação tanto na Rússia quanto no exterior. Era a segunda composição do gênero feita pelo maior compositor soviético, que tinha 26 anos quando concluiu a obra. Sua primeira ópera foi O nariz, concluída em 1928.
Veja os trechos:
Desde o primeiro minuto, o ouvinte se sente chocado pelas dissonâncias deliberadas, por uma confusa torrente de sons. Pedaços de melodias, inícios de uma frase musical ali se afogam, emergem novamente, e desaparecem no meio dum rugido triturante e gritante. Acompanhar esta “música” já é difícil, recordá-la é impossível.
O canto, no palco, foi substituído por guinchos. Se o compositor, por acaso, se encaminha para uma simples e clara melodia, imediatamente, como que assustado por tal desgraça, recua para a selvageria do caos musical- em trechos que se tornam cacofonias. A expressão que o ouvinte pede é substituída por selvagens ritmos. Pretende-se aqui exprimir a paixão através do ruído musical. Tudo isto não é devido à falta de talento, ou à falta de aptidão para pintar simples e fortes emoções em música. (…) Temos aqui a confusão “esquerdista” em vez de música natural e humana. O poder da boa música de contaminar as massas foi sacrificado em troca de uma tentativa pequeno burguesa e “formalista” de criar originalidade através de pantomima grosseira. Este é um jogo de habilidade inteligente que pode terminar muito mal.
E tudo isso é grosseiro, primitivo e vulgar. A música grasna, grunhe, rosna e se sufoca para exprimir cenas eróticas tão naturalisticamente quanto possível. E o “amor” é lambuzado por toda a ópera da maneira mais vulgar.
“Lady Macbeth” está alcançando grandes sucessos em plateias burguesas de outros países. Não será porque a ópera é completamente apolítica e confusa que estas plateias a aclamam? Isto não se explica pelo fato de ela lisonjear os gostos pervertidos da burguesia, com sua música aflita, gritona e neurótica?
Quando o jornal oficial afirma que “este é um jogo que pode terminar muito mal” está bastante evidente que o compositor passará a ser atingido pela violência política que caracterizou o terror stalinista. Sendo já o principal músico do país, de ampla reputação internacional, Shostakovich estava acima da possibilidade de ser eliminado – especialmente pelo que poderia oferecer em termos de música oficial para o regime. O modo de atingi-lo era eliminar pessoas próximas, o que foi feito sem cerimônia.
Os termos da condenação revelam os ditames políticos que norteariam a estética comunista, a necessidade de uma música que sustentasse moralmente a revolução, oferecesse uma estética próxima do gosto popular e estivesse de pleno acordo com a teoria política então em voga. Estabelecer o que fosse essa teoria não era tarefa fácil, uma vez que a produlção cultural dos primeiros anos da revolução bolchevique tinham sido marcados por forte experimentalismo, especialmente no período de Lênin. Shostakovich foi colhido pelas mudanças de orientação política, e atingido pelo terror.
Para quem quiser tentar entender os motivos da condenação política, há várias gravações da ópera disponíveis no youtube. Abaixo um trecho de uma versão cinematográfica do diretor tcheco Petr Weigl, produzida em 1992.
Comentários
Uma resposta para ““Confusão ao invés de música”: o ataque do Pravda a Shostakovich”
[…] : escrevi este texto motivado por um post no blog de meu amigo André Egg sobre a ópera Lady Macbeth de […]