A foto acima é do sítio do Teatro Guaíra.
Eu saí do Teatro Guaíra ontem convicto de ter presenciado um dos melhores momentos da Orquestra Sinfônica do Paraná.
A Sinfonia nº 2 de Mahler, “Ressurreição”, é uma peça que faz a gente entender porque poucos compositores se aventuraram a compor sinfonias no século XX.
Mahler levou ao ápice as possibilidades da forma sinfônica, deixando bem difícil a vida de quem queria compor no século XX, sem ficar fraco na comparação. Me chama à atenção, principalmente, a habilidade do compositor austríaco em tratar dramaticamente a música instrumental. No sentido de que os temas musicais e, principalmente o uso do colorido orquestral se prestam a efeitos capazes de arrebatar o ouvinte – coisa difícil nas formas sinfônicas puras (sem texto, baile ou representação cênica). É bem verdade que os dois movimentos finais da Segunda Sinfonia tinham texto, cantado por solistas (soprano e mezzo) e um coral de quase 200 vozes. Mas para a maioria dos ouvintes (eu incluso) o texto em alemão não fez qualquer sentido semântico – ficamos com o efeito musical apenas.
Ou seja, mesmo que a obra tenha trechos vocais com texto, ouvi como se fosse música instrumental pura, e é sobre isso que comento.
A primeira coisa que me atraiu foi o fato de que a obra tem quase uma hora e meia de duração, que transcorreram como se fossem 15 minutos. A maneira como Mahler conduz o ouvinte, “pegando pelo ouvido” e levando-o na esteira de seus temas musicais e efeitos instrumentais é cabal, uma verdadeira aula de como articular formas longas.
Em grande parte isso se dá pela maneira como Mahler usa a instrumentação. A orquestra, gigantesca, quase nunca toca em tutti. Os 5 trombones fazem um coro próprio em vários momentos, com ou sem os 3 trompetes (que aumentam para 6 no final do último movimento). O mesmo para as 6 trompas, as 4 flautas, os 4 oboés (incluído Corne Inglês), os 4 clarinetes e os 4 fagotes (com contra-fagote). Os 5 percussionistas e as duas harpas exigidos pela partitura se integram de tal modo ao tecido orquestral que dificilmente podemos percebê-los como naipes à parte. Mais do que marcação rítmica, a percussão dá densidade dramática à peça.
Outra habilidade que Mahler conduz com maestria é a dialética entre a profundidade e a seriedade do discurso harmônico (tonalismo expandido às últimas conseqüências) com a banalidade e a simplicidade da música ligeira. Isso fica muito claro quando o ouvinte é levado a momentos de distensão dos ouvidos no segundo e no terceiro movimentos – um uma valsinha vienense que soa à Johann Strauss e outro com espanholices em modo frígio.
Todo o peso dramático da música germânica cai novamente sobre o ouvinte nos dois movimentos finais, o penúltimo com um solo de mezzo e o último com a soprano e o coral.
Outra coisa que Mahler faz muito bem, é usar o efeito cênico que nunca deve ser desconsiderado em um concerto. É por isso, principalmente, que não dá pra ouvir uma sinfonia dessas em alto-falante. A presença cência da orquestra é uma coisa simplesmente fantástica: tem momentos que o prato sai para a coxia, toca com tanta força que o teatro inteiro treme, mas ouvimos o som suave e distante. O mesmo para um dueto de trompete e trompa, no último movimento. É realmente uma coisa incrível ver aquele enorme efetivo de músicos sobre o tablado, e perceber que cada um deles fica calado grande parte do tempo – o fôlego musical como uma coisa que passa entre os naipes de maneira meio mágica.
A força brutal dos tutti gigantescos era muito bem intercalada com momentos em pianíssimo. Pode-se dizer que o ouvinte é convidado a perceber detalhes musicais que em outras obras sinfônicas quase não aparecem, porque todo mundo fica tocando sempre. Mais do que volume de som, a orquestra de Mahler é o detalhe de cada timbre, de cada combinação, de cada conjunto.
Nada disso teria tido o efeito que teve não fosse uma grande orquestra em ação. Nossos “rapazes” mostraram a que vêm, e porque merecem ser considerados entre as grandes orquestras ativas no Brasil. O que sempre faltou foi uma programação digna, capaz de mostrar o verdadeiro valor do nosso conjunto. E aí está o mérito de Osvaldo Ferreira: ele é hoje um dos grandes regentes em atividade no Brasil. Não está pensando dentro do nosso padrão recente de mediocridade, e a depender de suas iniciativas Curitiba pode voltar a recuperar o protagonismo musical de outrora, que anda muito perdido – principalmente com a sensível melhora comparativa de outras orquestras, como a OSESP e a Filarmônica de Minas Gerais, entre outras.
Aliás, o belo concerto da OSP é uma resposta aos arautos da terceirização, que ficam bradando em todas as ocasiões que aquelas orquestras são boas porque não têm funcionário estável. Estão lá os nossos músicos, muitos deles sentando há décadas nas mesmas cadeiras do palco, e recebendo contracheque do governo do Estado, mostrando cabalmente que o problema do funcionalismo público não é a tal acomodação do funcionário, mas a falta de perspectiva de quem administra suas unidades. Quando conclamados a fazer algo grandioso, nossos funcionários públicos estão lá, prontos a dar sua qualidade, sem a qual não teriam sido selecionados nos rigorosos exames que resultaram em suas contratações.
Um plano de carreira decente seria também um ótimo incentivo. Quero dizer – o problema não está no funcionário, mas no formulador de políticas, função na qual temos colocado as pessoas mais tacanhas em tempos recentes.
Nesse sentido, o concerto marca um renascimento da orquestra. A temporada 2011 já foi muito louvável, apesar de montada às pressas. Que dirá agora que houve tempo para planejar tudo com antecedência.
Aliás, ainda não se tem a programação completa do ano, o que é indesculpável. Falta também à nossa orquestra um sítio decente na internet. Eu já ouvi boatos de que teremos até Sagração da Primavera com balé. Mas falta o caderno impresso para a gente ter um planejamento mínimo da agenda de concertos.
Se nossos “rapazes” continuarem tocando como ontem, Curitiba poderá se gloriar novamente de ter vida musical digna de nota. Osvaldo Ferreira mostra que é capaz de ser o condutor neste processo – remetendo ao termo em inglês para regente, dando um sentido muito mais amplo do que o mexer de braços que acontece na noite do concerto. Para chegar a tal resultado, o maestro português teve que usar toda sua capacidade de liderar e empolgar os músicos. Se não estivessem todos com “o coração na ponta da chuteira”, nada teria saído como foi. Seu trabalho de ensaiador meticuloso transpareceu com clareza na noite de ontem – ele definitivamente não tem medo de fazer as coisas difíceis.
Aliás, é muito simbólico disso tudo que o concerto tenha sido primeiro feito numa igreja – apesar do crime imperdoável de fazer a orquestra tocar naquela acústica, a ida à igreja batista significou uma busca de um possível público que não costuma freqüentar o Guaíra. A entrada franca também foi fundamental para ter casa cheia na terça-feira à noite.
Uma orquestra tem que ser isso mesmo, uma coisa integrada à comunidade da cidade e do estado, que tem que se empolgar com seus músicos.
O fato de o coro sinfônico ter sido o resultado da soma de esforços de 10 corais de Curitiba e Ponta Grossa (parabéns à Priscila Prueter pela coordenação), amplia ainda mais esse alcance. Estavam lá diversos cantores amadores que participaram talvez do evento musical de suas vidas. O que nos faz lembrar que a orquestra sinfônica é apenas a ponta do iceberg da vida musical de uma cidade.
Comentários
5 respostas para “Osvaldo Ferreira e a Sinfônica do Paraná: a Sinfonia nº 2 de Mahler”
Concordo muito contigo André. Gostei bastante da iniciativa da apresentação na igreja.
A qualidade da execução me causou arrependimento em não ter comparecido nas últimas apresentações da OSP e me fez prometer presença nas próximas (ainda mais se houver Sagração da Primavera! Com balé!).
Me chamou muito a atenção a responsabilidade do maestro Osvaldo Ferreira, que realmente estava com todos na ponta dos dedos e batuta.
Eu sou um novo frequentador assíduo dos concertos da OSP, pode escrever.
Valeu te encontrar por lá também! Grande abraço!
Olá, André,
Só para esclarecer algo que você diz no início de sua crítica, a quantidade de ciclos de sinfonias no sec.XX é enorme!! Apesar de Mahler ter escrito 11 sinfonias, pois “A Canção da Terra” também foi pensada como uma sinfonia, Shostakovich escreveu 15 sinfonias, Prokofieff, 7, Carl Nielsen, 5, Sibelius, 7, Villa-Lobos, 12, Cláudio Santoro, 14, Camargo Guarnieri, 7, Vaughan-Williams, 9, os americanos Roy Harris, 17 e William Schuman, 10, e vai por aí…
Um abraço,
Harry Crowl
Sim Harry,
você tem razão. Não são poucos compositores como eu disse. Tem bastante sinfonia no século XX.
Mas só pra me defender um pouquinho, os compositores que você aponta tem em comum a característica de serem de países periféricos, e suas sinfonias podem ser consideradas como parte de movimentos de afirmação nacional (não necessariamente pela utilização de uma linguagem nacionalista de composição, mas simplesmente por tentar afirmar que em seus países também se fazem sinfonias).
No centro do sistema do que chamamos bestamente de “cultura ocidental” (Alemanha e França – no caso da música sinfônica) a sinfonia era uma forma esgotada em inícios do século XX.
Neste sentido, especialmente dentro da tradição germânica, as sinfonias do Mahler são uma espécie de ápice que decreta uma impossibilidade de seguir adiante, como inovação que se faça dentro da tradição.
Digamos que a minha frase é apressada e pouco precisa, mas não deixa de ser um pouco verdadeira.
Obrigado pelo comentário!
Maravilhoso!
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