Leon Uris: Exodus

Eu acho que o Uris queria escrever um livro de história. Mas ele não é historiador, não faz a mínima ideia de como se processa a pesquisa histórica. Então foi mesmo mais honesto escrever um livro de ficção. Ou seria de propaganda?

Porque eu acho difícil o leitor discernir o que é informação confiável no livro do Uris, até onde vai a História e onde começa a ficção, o que é verdade e o que ele apenas gostaria que fosse.

O livro foi publicado pela primeira vez em 1958, e parece que até já foi filmado em Holywood. A história que ele conta gira em torno de alguns personagens, envolvidos com uma trama de imigração clandestina para a Palestina, logo após o fim da 2ª Guerra, ainda durante o mandato britânico. Uris acompanha seus personagens até a fundação e estabelecimento do Estado de Israel.

Para estabelecer o pano de fundo dos personagens, Uris fez muita pesquisa, segundo explica na apresentação do livro, em dois anos de entrevistas e viagens. Assim, a parte histórica que me parece razoavelmente verossímil é que versa sobre o drama dos judeus na Europa.

Os personagens do romance de Uris são típicos. Um professor judeu-alemão assimilado, que nunca imaginava que a perseguição nazista poderia chegar até a universidade. E que quando a perseguição chegou ao seu ápice não teve outra escolha senão mandar a filha mais velha para viver com uma família adotiva na Dinamarca. Após a guerra a moça tenta reencontrar a família, sem sucesso, e acaba migrando para a Palestina na esperança de rever o pai – o único cuja morte em campos de concentração não tinha sido confirmada.

Uma família de judeus do Gueto de Varsóvia, cujos filhos foram heróis da resistência. Mas só um sobrou – o mais novo, que acabou trabalhando como prisioneiro na limpeza dos fornos crematórios de Auschwitz. Depois de libertado também migrou para a Palestina.

Karen e Dov (os nomes da garota e do rapaz) terminam num campo britânico de refugiados na ilha de Chipre, para onde eram mandados os imigrantes capturados, pois os britânicos limitavam a entrada de judeus na Palestina a um número mínimo.

Essa é a outra parte bem substanciada no livro: a hipocrisia da potencias ocidentais em relação à situação dos judeus. Especialmente o Império Britânico, que desde 1917 jogava com promessas de um Estado Palestino capaz de acomodar os judeus sionistas (desejosos de migrar para a Terra Santa como único lugar seguro para escapar ao anti-semitismo europeu).

Neste aspecto alguns atores estão muito mal representados: os franceses são vistos como apoiadores dos judeus, enquanto as pesquisas recentes (mas isso foi depois do livro de Uris) vêm mostrando que Vichy era muito solícito em enviar prisioneiros para campos de extermínio nazistas. Os norte-americanos são pouco mencionados, e de passagem, sempre como apoiadores incontestes da causa sionista. Acontece que os EUA, se não chegaram a ter campos de extermínio, também foram sempre razoavelmente anti-semitas, totalmente omissos à questão do extermínio processado pelos nazistas (com empresas como a IBM colaborando ativamente na tecnologia responsável pelo processo) Havia aquela tese de que bombardear uma via férrea das que levavam judeus aos milhares para fornos crematórios era perda de tempo – era mais importante ganhar a guerra primeiro.

Também o apoio de judeus norte-americanos à causa sionista é sempre apontado no livro. O que é excesso de boa vontade.

Por outro lado, poloneses, e habitantes do Leste Europeu em geral, são apontados como monstros que odiavam os judeus e faziam nada para defendê-los ou mesmo o possível para colaborar com seu extermínio. Isso aí eu gostaria de conferir com algum estudo sério, pois se o Leste Europeu era a terra dos maiores guetos judeus e dos pogroms disseminados, também é fato que eslavos estavam junto a judeus, comunistas, homossexuais, artistas de vanguarda e débeis mentais como alvo no programa de “limpeza”. E os milhões de mortos russos ou poloneses superam o de judeus na guerra.

Mas outra parte da ficção de Uris remete à saga da colonização judaica da Palestina. Uris imagina uma saga de dois irmãos da ydishland russa que emigram a pé para a Palestina, numa inverossímil viagem de quase 4 anos trespassando altas montanhas nevadas, sem contar com nada mais que algum apoio das comunidades ídiches encontradas no caminho.

Yakov e Jossi, que depois adotariam os nomes hebraicos de Akiva e Barak, acabam se tornando peças fundamentais no conhecimento da antiga terra e de seus habitantes (árabes sob domínio primeiro turco e depois britânico, e judeus sefardin) vistos todos como ignorantes, imprestáveis e supersticiosos.

Isso aí é outra coisa curiosa no livro de Uris. Para dizer que a imigração de judeus europeus para a Palestina era necessária, você pode usar dois tipos de argumentos. O primeiro é o de que não havia lugar seguro para os judeus na Europa, com o anti-semitismo tão arraigado em todos os países. Isso me parece uma verdade parcial: a Europa não era lugar seguro para ninguém antes que a social-democracia estabelecesse o que Hobsbawm chama de “era de ouro” no imediato pós-guerra. Judeus tinham vivido como assimilados em boa segurança durante os governos liberais na Bélle Epoque, o perigo surgiu com os fascismos – regime sob o qual praticamente ninguém estava seguro.

Ou seja, o perigo para os judeus na Europa era real, sua situação insustentável. Entretanto, construir regimes democráticos e de respeito aos direitos humanos era uma tarefa menos difícil na Europa do que na Palestina. A questão é que o sionismo ganhava ímpeto junto com os demais nacionalismos europeus, e assumiu especial significado para órfãos de campo de concentração, que tinham crescido sem vínculo com nenhuma pátria, e com apenas uma vaga lembrança da educação religiosa recebida nas sinagogas. Para esses personagens, construir uma pátria na Terra Santa era praticamente a única opção, e isso o Uris retrata muito bem nos seus personagens fictícios.

O outro argumento para dizer que a imigração era necessária é demonstrar que os árabes e os sefardim que habitavam a Terra Santa havia séculos eram uns ignorantes imprestáveis, que não eram capazes de produzir nada nem prosperar. Esse tipo de argumento só pode mesmo existir na cabeça de um norte-americano: se um povo não é capaz de enriquecer, só pode ser porque ele não presta. Daí a dizer que eles merecem ser alijados por alguém superior, capaz de produzir mais, vai um passo.

A narrativa de Uris não se cansa de mostrar (é tudo ficção, lembrem-se), que os judeus que emigram são muito produtivos. Drenam pântanos e irrigam desertos – tornando produtivas as terras que os árabes não ocupavam. Mas os árabes, ao invés de amá-los por isso, consideram-nos como ameaça – vejam só que bobocas. Uris se esquece de considerar que a prosperidade dos imigrantes sionistas se baseava no sistema de kibutzin, que ele descreve muito bem. A força da coletividade organizada, que os sionistas adotaram por simples falta de outra opção, e que fez a verdadeira diferença em relação ao sistema semi-feudal aplicado pelos árabes.

Some-se a isso outra visão de mundo que só podia estar na cabeça de um norte-americano evangelical, com aquela velha concepção de “destino manifesto”, que já era muito marcante em 1958, quando o livro foi escrito: porque Deus deu tanto poder aos Estados Unidos? Porque ele era o país capaz de levar a Verdade e o Bem ao mundo. Nesta lógica, os inimigos dos EUA são os inimigos de Deus, grosso modo, os que estão do outro lado na Guerra Fria.

Fica fácil transpor esta lógica para outra, não menos tola: de que os judeus são um povo de Deus, com direito divino àquela terra da qual tinham sido dispersados por dois mil anos. A falsidade histórica deste tipo de afirmação está mais do que demonstrada no livro de Shlomo Sand, nem vou perder tempo com isso neste texto (escrevi sobre este livro aqui e aqui).

A coisa fica ainda mais ridícula porque Uris não tem vergonha de mostrar este viés, traindo-se em frases como “fulano demonstrava que tinha mais comunhão com Deus” ou “fulana podia sentir Deus naquela terra”. Totalmente evangelical também é a concepção de que a narrativa bíblica corresponde a uma verdade histórica literal, coisa que as escavações de arqueólogos norte-americanos e judeus tentaram demonstrar ao longo de décadas, mas que ruiu por terra a partir dos anos 1970, quando alguns pesquisadores pararam de tentar fazer pesquisa para provar hipóteses que já davam como certas, e passaram olhar as evidências. (Essa mudança de paradigma está bem explicada no livro de Sand também).

Deixando de fora estas questões mesquinhas, o livro é uma boa leitura (só por isso mesmo é que pode ser propaganda). Cativante e empolgante, especialmente nas partes que tentam explicar o panorama histórico envolvido em todas as questões. Mas há que se dizer que a prosa e a imaginação ficcional do Uris são bem pobrezinhos. Especialmente se você faz como eu e o coloca em leituras de férias compradas na seção de livros de bolso numa livraria (são os livros cujo preço cabe no bolso) – e o lê logo após Hatoum, Steinbeck e Saramago.

Uris ficaria bem numa comparação com livros do mesmo gênero – propaganda religiosa fundamentalista com mistura de ficção e realidade histórica. No caso dele, fica em vantagem por que sua trama ocorre no passado, e não no presente ou no futuro como sua literatura congênere: Este mundo tenebroso, O profeta, a série Deixados para trás, ou o best-seller A cabana.

Mais um fator favorável a Uris. Difícil alguém no Ocidente não simpatizar com os judeus e seu Estado naquele momento: eles tinham sido as vítimas do nazismo, e não havia compensação suficiente para o extermínio. Outro aspecto não menos importante: o sionistas eram europeus, e foram os primeiros capazes de estabelecer um Estado liberal moderno no Oriente Médio – uma região rica em petróleo e estratégica para o capitalismo e o abastecimento energético dos países industrializados. Parecia claro de que lado estavam o Bem e o Mal no conflito árabe-israelense.