A Camerata Antiqua de Curitiba fez seu concerto de encerramento de 2015 regida por Emmanuelle Baldini apresentando O Messias de Haendel.
O Messias de Haendel
Uma das obras mais famosas da história da música, o Oratório do compositor alemão radicado em Londres estreou em 1741 e desde então vem sendo constante sucesso onde é apresentado. Não é pra menos. Composta para solistas, coro e orquestra, baseia-se em uma seleção de textos bíblicos de Isaías, dos Salmos, dos Evangelhos, outros profetas, epístolas e até do Apocalipse, na bela tradução inglesa. A escolha dos textos bíblicos de maior força poética na língua inglesa, e a notável “tradução musical” feita por Haendel da força espiritual destes textos resulta no que talvez seja a mais bela e mais importante obra musical sacra de todos os tempos. É também uma das maiores obras do que se poderia chamar de música inglesa, uma das maiores da história da música vocal, e tanta coisa que não preciso ficar listando.
Acontece que eu só conhecia de gravações. Minha mãe tinha um disco com os coros, acho que ela ouviu até furar, e eu junto. Tanto que me lembrava de todas as melodias quando vi o concerto. Mas ouvir ao vivo é outra coisa COMPLETAMENTE diferente, como costuma ser com música de concerto. Se você já ouviu os mais belos clássicos nos seus alto-falantes (seja no aparelho da sala, na TV ou nos fones de ouvido) você pode ter certeza de ainda não ouviu os clássicos. Ouviu um arremedo deles.
Bem, é verdade que também muitos dos clássicos que se apresentam ao vivo por aí nos teatros desse brasilzão também costumam ser arremedos, de muito mau gosto. Curitiba não foge à regra. Mas…
A execução da Camerata
A Camerata Antiqua de Curitiba – coro, orquestra, solistas e músicos convidados, fez uma apresentação magistral e extremamente convincente dando prova de sua maturidade incontestável como grande conjunto. Talvez o que era o principal problema técnico da Camerata fosse o seu conjunto vocal, caracterizado por muito tempo por ser mais um ajuntamento de ótimos cantores do que exatamente um conjunto coeso. No Messias apresentado esse fim de semana não foi o que se viu. O conjunto vocal funcionou com perfeição, demonstrando timbragem e equilíbrio perfeitos, leveza nos agudos, entrosamento. Merece o cargo de Regente Vitalícia do coro a Mara Campos, que fez a preparação da obra. O seu trabalho se destacou, e ficou evidente como ela foi capaz de colocar o coro num patamar mais elevado do que ele talvez jamais esteve. Não é difícil dizer que ela provou ser a maior regente a trabalhar com este coro. Também é notável o ganho de resultado com Denise Sartori na preparação vocal. E certamente os novos integrantes que compõem o conjunto demonstram um outro fator nada desprezível: a nova geração de músicos que estão assumindo a vida profissional no Brasil talvez seja a primeira que possa ser considerada de alto nível internacional.
Some-se a isso o desempenho muito convincente da Orquestra, que já vem dando seguidas mostras de maturidade como conjunto, mas que continua evoluindo sensivelmente, especialmente na execução de música barroca, que talvez não fosse o seu forte até pouco tempo. Ouvimos a orquestra como um conjunto barroco que pouco ficou a dever até mesmo a grupos especializados que se apresentaram com instrumentos de época em Curitiba em anos recentes. Na minha memória, comparo com a apresentação que assisti do Concerto Italiano de Rinaldo Alessandrini na saudosa série Latina 2000 ou o concerto do grupo Palladians na mesma Capela Santa Maria (para este escrevi uma crítica). E comparo também com outras vezes em que a Orquestra de Câmara de Curitiba (chama-se assim o conjunto instrumental que integra a Camerata Antiqua de Curitiba) apresentou obras barrocas, chegando à conclusão de que atualmente o grupo atingiu uma sonoridade convincente, madura, respeitando o período histórico mesmo sem tocar em instrumentos de época. Particularmente acho o ideal, uma vez que os grupos especializados em música antiga muitas vezes produzem um som que atrai apenas os especialistas no assunto. Essa orquestra tocou um Messias capaz de convencer especialistas e emocionar o grande público. Exatamente o objetivo de um conjunto como esse, mantido pela prefeitura de Curitiba.
Destaca-se o trabalho de preparação de Emmanuelle Baldini, que casou perfeitamente coro, solistas e instrumental. Fez uma execução emotiva mas equilibrada com exatidão. Soube ser eloquente e manter a delicadeza da música barroca. Soube trabalhar de modo a valorizar os gigantescos achados composicionais de Haendel, e o que ouvimos foi uma obra que mantém o ouvinte “arrepiado” por quase todo o tempo, em cada novo Coro, Recitativo ou Ária consegue manter o nível de interesse e paixão estética – mesmo sendo difícil de imaginar, a cada cadência, que fosse possível vir algo melhor à frente.
Os solistas
A escolha do pessoal convidado para esta produção foi sensivelmente positiva. Foi notável como a escolha do regente e dos solistas habilidosamente mesclou experiência internacional e atuação no Brasil. Demonstração de competência da equipe que formula a programação da temporada, pois isso permite obter ótimo resultado artístico mesmo com a sabidamente combalida situação financeira do município.
Emmanuelle Baldini foi um regente muito competente, como afirmado acima. E os solistas estavam à altura do desafio, podendo contracenar com um grande grupo em um de seus melhores momentos, além da absoluta empatia obtida do público. Paulo Mestre, contratenor, mostrou leveza vocal e profundidade dramática, cumprindo muito bem a função que Haendel destinou à sua voz. Norbert Steidl, baixo, também provou ser ótima voz para o papel, de deu densidade à trama espiritual sugerida pelo texto. Destaque para sua aparição muito convincente em For, behold, darkness shall cover the earth – só mesmo um baixo poderia retratar com sua voz as trevas cobrindo a terra. Miguel Geraldi, tenor, também esteve muito bem, emprestando emoção às ideias de redenção que Haendel confiou a esta voz.
Mas acho difícil não dizer que o destaque foi Graciela Oddoni, soprano. Nas vezes em que ela cantou, e especialmente na última ária antes do coro final, ela trouxe tanta dramaticidade à obra que quase nos colocava DENTRO da Bíblia. Talvez tenha arrancado lágrimas. Contribuiu muito para esta incrível expressão o pequeno conjunto de violino (Winston Ramalho), Violoncelo (Faisal Hussein), teorba (Guilherme de Camargo) e cravo (Fernando Cordella) que contracenou com ela neste momento sublime.
Isso nos leva também aos elogios aos convidados. O cravista tocou com tamanha energia e entusiasmo que mesmo na última peça – depois de mais de duas horas tocando, ele ainda parecia estar a ponto de ser ejetado do banco. A efetividade rítmica do baixo contínuo é fundamental para a força dramática da obra, especialmente nos coros, e Fernando Cordella fez isso com maestria. Alternando com a agudeza metálica do cravo e sua vivacidade percussiva, Guilherme de Camargo trouxe doçura e profundidade com a teorba. Em muitos momentos era ele que segurava a harmonia, e especialmente nos momentos em que acordes completamente inesperados surgiam depois de pausas súbitas, era sempre ele a mostrar os novos caminhos, fosse com um acorde fosse com um simples bordão.
Também foi profundamente comovente o solo de trompete de Jorge Scheffer em The trumpet shall sound, quando contracena com a ária do baixo, a penúltima antes do coro final. O som cristalino de Scheffer já tinha impressionado quando apareceu no meio da primeira parte em Glory to God in the highest, desta vez junto com o coro.
A força dramática da partitura de Haendel
Toda a excelência da execução que nos foi dada por este maravilhoso conjunto permitiu perceber com clareza o que tem de tão grande nesta obra.
O Oratório é uma forma musical difícil, por precisar colocar a força dramática toda na música e em sua relação com o texto, uma vez que não há cena como em uma ópera, nem tampouco são aceitáveis os exageros de virtuosidade vocal que os cantores costumavam desempenhar (muitas vezes por exigência de contrato) na composição para teatro lírico.
Haendel beneficiou-se da força poética da tradução inglesa King James, um clássico literário de inegável influência sobre muita coisa, e certamente a mais bem sucedida versão da Bíblia depois do ocaso do Latim como idioma corrente. A riqueza da versão clássica inglesa foi potencialiada pela escolha muito feliz dos textos e sua disposição pela sequência da obra. Era fundamental, para quem queria sentir toda a força de O Messias, ouvir acompanhando o libreto. O fato dele ter sido impresso, em inglês e com tradução bem-feita, soma mais pontos para o pessoal da produção.
Talvez a interessante fórmula encontrada por Haendel tenha sido a de dar os momentos de maior exuberância musical (inclusive com abundância de melismas, contraponto e repetição exaustiva de pequenos trechos de texto) para o coro, e não para os solistas. Os solistas assumem sempre os momentos de maior contrição e de profundidade espiritual, intercalados com intervenções do coro sempre altamente impactantes. Fica até difícil entender porque o Alleluia final da segunda parte é a parte mais famosa da obra, pois há coros significativamente melhores. And He shall purify the sons of Levi, por exemplo, logo no início, ou o Behold the Lamb of God depois do também ótimo Glory to God in the highest. Since by man came death, ou ainda o coro final Worthy is the Lamb that was slain também poderiam ser considerados os pontos altos da obra.
Quem escuta a peça inteira numa execução tão boa sai de queixo caído matutando sobre como é possível uma obra ter tantos “pontos altos”. O Haendel era simplesmente o cara certo no lugar certo na hora certa, porque fica difícil imaginar uma obra tão densamente impactante em outro momento histórico. A orquestra, por exemplo, inventada no início do século XVII como conjunto de acompanhar ópera chegava no seu auge como conjunto baseado nas cordas de arco, da família dos violinos. Por outro lado, o contínuo cairia em desuso nas décadas seguintes, sem ninguém inventar nada melhor em seu lugar para dar a base rítmico harmônica necessária a uma boa música (talvez somente no século XX os conjuntos de música popular tenham recuperado de maneira correta essa força musical incrível). E por fim, com a ascensão da música absoluta no período chamado clássico, quando sonatas, sinfonias e quartetos sobrepujaram totalmente a música com texto no centro da grande arte, talvez a maravilha da relação texto música em obras longas só tenha sido recuperada plenamente quando os modernistas voltaram à literatura para buscar soluções para o colapso da música tonal na virada dos séculos XIX e XX.
Acho que outro acerto da produção foi ter reservado um dia separado para a palestra pré-concerto. As duas récitas foram sexta e sábado, e o maestro Osvaldo Colarusso ficou a cargo da palestra na quinta. Eu não pude assistir, mas tenho certeza que foi ótima – ele é um grande palestrante.
O melhor encerramento de ano
O ano de 2015 não foi fácil pra ninguém. O Brasil, o Paraná, as universidades, a vida musical, vivemos umas cenas aí que sonhamos que não deveriam ter acontecido.
Encerrar a programação musical com essa obra sublime, numa execução tão bonita, deu pra gente um momento de magia. Muito bom terminar o ano assim, dá esperança de que ainda tem coisa boa no mundo, de que a vida ainda reserva boas coisas pra quem tiver paciência e persistência.
Obrigado à Camerata Antiqua de Curitiba.
E um parabéns a nosso principal conjunto municipal, que termina o ano demonstrando maturidade, coragem artística e justificando plenamente as verbas públicas que recebe. Que 2016 venha melhor ainda.
Comentários
2 respostas para “Emmanuelle Baldini e a Camerata Antiqua de Curitiba: O Messias de Haendel”
Obrigado pelas suas palavras André! Foi um grande prazer para Camerata Antiqua revisitar o Messias de Haendel depois de quase 10 anos. De fato foi acertiva a nossa escolha do regente Emanuelle Baldini e os 4 solistas para trazer para o público de Curitiba esta importante obra. Um abraço e logo nos veremos na programação de 2016.
Francisco de Freitas Jr
Representante e violinista.
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