Primeiro eu comprei uma “caixa especial” de Jane Austen, numa super promoção da Amazon. Depois eu vi o Thomas Piketty dizendo no começo do seu livro que os economistas do século XIX não tinham bons dados para fazer análises consistentes, e que alguns romancistas forneciam melhor panorama da questão da riqueza patrimonial, citando principalmente Jane Austen como exemplo.
Me empolguei ainda mais e trouxe a caixa para ler nas férias[*]. Comecei pelo livro que entendi ser o primeiro que a autora escreveu, embora não tenha sido o primeiro publicado. Fui lendo as explicações de Ivo Barroso na apresentação e percebi que o valor da obra da autora é muito maior do que eu imaginava.
Filha de um pastor anglicano, vivendo no final do século XVIII, quando o mercado literário começava a adquirir sua maior dimensão, Jane Austen foi pioneira como autora quase que autopublicada. Seus escritos foram valorizados primeiro pela própria família, que financiou duas edições. A abadia de Northanger teve os direitos comprados por um editor mas a obra não foi publicada, sendo os originais devolvidos anos depois a pedido da autora para revisão, saindo apenas postumamente. Numa época em que não era de bom tom mulheres escreverem romances, e assinando seus primeiros livros como “Uma Senhora”, Jane Austen ainda jovem tornou-se um fenômeno de vendas. A relação da autora com os editores é usada na apresentação como ótimo exemplo de como eles podem se equivocar redondamente sobre valor literário e mercadológico de originais que lhes são submetidos.
Eu considero que provavelmente a pior falha da minha educação foi nunca ter aprendido a importância da literatura inglesa, que descubro maior e mais interessante a cada livro que leio.
Jane Austen tem um duplo atrativo. Para quem procura boa literatura, sobressaem-se os personagens bem construídos, os ótimos diálogos, o modo de construir a trama jogando com a expectativa do leitor (e sempre surpreendendo, mais ou menos como se faria depois na literatura policial), bem como as referências a outros gêneros literários – feitas com bom humor e sagacidade.
No caso de A abadia de Northanger, o sarcasmo da autora recai sobre os romances “góticos”, então em moda na época, feitos de aventuras de mistérios em castelos antigos. Há também boa discussão do valor do romance frente a gêneros de maior status como a poesia e a história pátria – as conversas dos personagens permitem entrever que o romance era coisa de moças desocupadas, enquanto existia coisa mais séria para pessoas importantes fazerem, embora a narradora do romance se posicione a favor deste gênero e da função de entreter que dá dinheiro ao escritor.
E aí já apontando para o outro atrativo que vinha comentando acima – para quem está interessado em história. Primeiro a própria questão do mercado literário, que o livro trata de raspão, mas de modo muito interessante. Depois, pela questão patrimonial comentada pelo Piketty. Os personagens de A abadia de Northanger são famílias proprietárias preocupadas permanentemente com bons casamentos como forma de garantir o patrimônio. O principal tema do romance são os enlaces feitos por jovens aristocratas durante uma estadia na estação termal de Bath. Percebe-se que o livro tem muito de autobiográfico pois os Austen mudaram-se para Bath por uns tempos, e ali a autora teve um noivado curto, talvez como o do personagem James Morland no romance.
O livro tem também a ótima descrição do ambiente social, as conversas, os bailes, flertes, modos de hospitalidade, jantares, trajes, decoração – tudo aparece de modo tão natural, e ao mesmo tempo tão interessante que fica realmente muito melhor que um livro de história que pretendesse tratar destas questões.
Tem ainda a questão do universo feminino: tenho a impressão de que a literatura em geral (autores, personagens, mentalidades) é escandalosamente enviesada pelas leituras masculinas do mundo. Muito interessante ler a história pela ótica de uma jovem de 17 anos da Inglaterra do fim do século XVIII, e ver como a autora consegue jogar com os estereótipos de gênero de forma divertida e irônica. Se hoje o lugar da mulher (como autora, como leitora e como personagem) está melhor posicionado no mundo literário, acho que podemos atribuir bastante importância ao pioneirismo de Jane Austen em tempos remotos.
Mas o principal de tudo: o livro tem uma ótima história, daquelas que a gente começa a ler e não consegue parar. A escrita é muito fluída, o tempo da narrativa segue com perfeição, e a gente consegue se sentir na pele de Catherine Morland, a personagem principal através de quem vemos o mundo nesta obra. Acho que parte considerável do mérito deve ser atribuída ao tradutor Rodrigo Breunig – embora eu não possa avaliar por não ter lido a obra em inglês, a tradução que possuo tem o mérito de manter o estilo aristocrático das conversações em um português brasileiro fluente e contemporâneo.
E claro, ironicamente, Jane Austen não chegou a conseguir um bom casamento, morrendo solteira aos 42 anos. Depois de passar por dificuldades financeiras em decorrência da morte do pai, chegou a ter retorno financeiro por seu primeiro romance publicado – Razão e sentimento, que financiou por conta própria e teve um rendimento de 140 libras (o que dava quase 30 anos de salário de uma trabalhadora doméstica, mas que era pouco para os padrões aristocráticos descritos nos seus livros).
[*] Este post está aqui nos rascunhos desde janeiro, esperando eu ler a coleção completa, coisa que fica talvez para próximas férias
Mais obras de Jane Austen comentadas aqui no blog:
Orgulho e preconceito
Persuasão
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