Já vão cinco anos e alguns dias que escrevi a última crítica de concerto na minha página. Antes que eu esqueça como se faz, tá mais que na hora de tirar a poeira do teclado do computador. E que ocasião melhor pra isso do que esse evento maravilhoso? Quando se pensava que o centenário do compositor italiano passaria em branco no Brasil… Eis que na UNESPAR temos um grupo de bravos e corajosos músicos e pesquisadores que ousaram e nos deram essa chance de ouvir Nono.
Agradeço ao meu colega Felipe Ribeiro, que insistiu e me instigou para estar presente. Confesso que na correria de coisas que ainda falta terminar entre hoje e o início do recesso da Universidade, daqui a 4 dias… eu nem poderia ter ido. Incentivo a mais foi saber da vinda da professora Marta Castello Branco (UFJF), que seria uma das palestrantes do evento.
O Colóquio Nono
O Colóquio Nono aconteceu agora, dias 14 e 15 de dezembro de 2024. O evento foi organizado para marcar o centenário do nascimento do compositor, e consistiu em palestras e um concerto.
O evento ocorreu no Campus de Curitiba I da UNESPAR, Sede da Rua Barão do Rio Branco. Foi realizado pelo Grupo de Pesquisa Núcleo Música Nova da UNESPAR, o Laboratório de Música, Sonologia e Áudio (LaMuSA) da UNESPAR e o Programa de Pós-Graduação em Música da UNESPAR, com apoio da Orquestra Filarmônica da UFPR.
Os palestrantes foram os professores Marcio Steuernagel e Felipe Ribeiro, da UNESPAR e a professora Marta Castello Branco, da UFJF. O concerto teve direção musical de Márcio Steuernagel, difusão eletrônica de Felipe Ribeiro, e participação de Horácio Gouveia (piano), Fabrício Ribeiro (flauta baixo), Cleverson João Zavatto Teche (tuba) e Sérgio Freire (saxofone barítono).
O pequeno e privilegiado público presente era composto de estudantes de composição, discentes do PPGMUS-UNESPAR, alguns professores – inclusive os ilustres pioneiros e decanos da música nova em Curitiba, os compositores/professores Harry Crowl e Mauricio Dottori.
As palestras
Eu infelizmente não escutei a palestra “Escutando o Erro em Luigi Nono”, do prof. Marcio Steuernagel (UNESPAR) nem a palestra “A eletrônica na obra tardia de Luigi Nono”, do prof. Felipe Ribeiro (UNESPAR). Só posso escrever sobre a interessantíssima palestra “Processos composicionais em Das atmende Klarsein”, da professora Marta Castello Branco (UFJF).
Para quem ia assistir o concerto no domingo, era fundamental ouvir ao menos esta palestra. Porque a professora Marta trouxe uma exposição de muitos elementos relacionados aos processos criativos da obra – inclusive uma espécie de arquelogia dos equipamentos eletrônicos envolvidos na composição.
Das atmende Klarsein foi composta no período em que Nono trabalhou com o Estudio Experimental na Heinrich Strobel Stiftung em Freiburg, atualmente estúdio da Südwest Rundfunk (SWR). O aparato eletrônico usado na criação da obra incluiu um Halaphon, equipamento desenvolvido pelo engenheiro e compositor Hans Peter Haller. No concerto de domingo, em que partes dessa obra seriam executadas, o Halaphon foi emulado em equipamentos atuais pelo prof. Felipe Ribeiro. Curioso pensar que as partes mais futuristas de uma composição de 1981 são hoje as que precisam de uma mais complexa arqueologia tecnológica para serem apresentadas em concerto.
O Halaphon era simplesmente um equipamento capaz de fazer “girar” os sons captados pelo microfone por um sistema de caixas, que se me lembro corretamente eram 6 caixas na composição original, mas acredito que foram adaptadas para 4 caixas, na execução que ouvimos em Curitiba.
A professora Marta fez uma explanação que envolvia os processos de uso da eletrônica, as concepções do trabalho de colaboração com os músicos no processo criativo, o uso do texto, a relação entre som e silêncio, o convite ao erro como ferramenta criativa. Tantos aspectos dos processos criativos de Luigi Nono ela abordou, que nos fez entender a importância desse compositor para a música dos anos depois da Guerra, cuja influência paira sobre as gerações de criadores que vieram depois dele.
Marta ressaltou em sua fala a colaboração com Hans Peter Haller, num processo em que o desenvolvimento dos equipamentos eletrônicos era feito a partir das necessidades estéticas de criação musical, e não o contrário. O uso dos textos de Massimo Cacciari, poeta, filósofo, político – camarada de Nono no Partido Comunista, que chegou a prefeito de Veneza e ao Parlamento Europeu depois que já tinha deixado o PCI. A colaboração com Roberto Fabbriciani, o flautista que inventou e encomendou a construção da Flauta Hiperbaixo, o inusitado instrumento para o qual Nono concebeu partes da obra.
Ao final, a professora Marta Castello Branco leu nas palavras de Luigi Nono sobre questões dos processos criativos. Para isso usou um livro, cuja capa pude atentar. Tratava-se de sua obra O instrumento musical como aparato, publicada pela Editora UFJF.
O concerto
Quando comecei a ver o material de divulgação do evento, já pensei que desafio seria fazer um concerto com obras de Luigi Nono no Auditório Mario Schoemberger da Sede Barão do Rio Branco da UNESPAR. Trata-se de um auditório gigantesco, com mais de mil lugares, parecia pouco adequado ao tipo de realização musical envolvida.
Claro, não seria um desafio instransponível para os organizadores do evento – os professores Marcio Steuernagel e Felipe Ribeiro desenvolveram uma solução criativa e muito eficaz: ficamos todos, músicos e plateia em cima do palco. Assim a platéia podia ficar adequadamente circunscrita ao quadrante de altofalantes que permitiria a melhor percepção da espacialização, elemento central nas obras que seriam apresentadas.
Das atmende Klarsein, como aprendemos na palestra de Marta Castello Branco no dia anterior, é uma peça em 8 movimentos para coro, Flauta Baixo e eletrônica. Ouvimos no concerto apenas partes de flauta. Os movimentos foram distribuídos ao longo do programa, intercalados com as demais obras. Na impossibilidade de trazer Roberto Fabbriciani com seu instrumento mirabolante e praticamente exemplar único no mundo, a solução foi recriar a obra em flauta baixo, um trabalho para o qual o evento podia contar com a participação de Fabrício Ribeiro.
Depois do 1º movimento na flauta e eletrônica dos dois ribeiros, ouvimos Horácio Gouveia tocar …sofferte onde serene…, peça de 1976 em que o piano tocado interage com sons gravados em tape (novamente arqueologia tecnológica em ação, tranposição da eletrônica para equipamentos atuais por Felipe Ribeiro). O que escutamos é uma peça tão bem construída que dá a impressão que os sons estão sendo gravados do piano ali no momento e relançados nos alto-falantes. Suspeito que não é disso que se trata, mas do trabalho meticuloso de Horácio Gouveia em criar no instrumento as coisas exatamente como devem ser ao interagir com o tape, nos dando essa impressão meio milagrosa.
Termina a peça de piano e tape, 2º movimento de Das atmende Klarsein, e seguimos para A Pierre. Dell’azzurro silenzio – inquietum. A peça foi composta em 1985 para flauta contrabaixo, clarinete contrabaixo e eletrônica. Na impossibilidade de ter os instrumentos originais, ouvimos uma recriação em flauta baixo (Fabrício Ribeiro) e saxofone barítono (Sérgio Freire). É uma peça que nos impacta de várias maneiras, e talvez nos faça imaginar porque o aniversário de Luigi Nono, cuja data foi em janeiro, só fosse comemorado no Brasil agora em dezembro. Um desafio e tanto ensaiar essa obra.
Seguimos para um terceiro fragmento de Das atmende Klarsein, e então vamos para a última peça do programa: Post-prae-ludium No. 1 Per Donau, de 1987, interpretada na tuba por Cleverson João Zavatto Teche, com eletrônica de Felipe Ribeiro. Além de toda a dificuldade expressiva, musical, estética, a peça leva aos limites físicos: Luigi Nono escolheu explorar os limites do instrumento, sons muito suaves, quase impossíveis de tirar de um instrumento tão grande, ou sons muito agudos, nada naturais no instrumento que seria o mais grave em uma orquestra sinfônica.
É dos limites que sai a beleza extrema, os sons são realmente muito instigantes, e Cleverson parecia dar a vida por esta peça, para que tudo soasse, pouco importando se fosse seu último fôlego. Uma entrega que estava, talvez mais patente na performance da tuba, mas que também era uma marca de todos ali participantes – flautista, pianista, saxofonista, diretor musical, difusor de eletrônica.
O fim do concerto parecia uma brutalidade. A entrada no universo composicional de Luigi Nono nos obrigou, os que estávamos no público, a um mergulho em outro mundo. Era como se não estivéssemos no Brasil, não estivéssemos em 2024, não estivéssemos em dezembro. Era como se estivéssemos num outro mundo, outro universo de sons. Como se a vida tivesse parado, como se o tempo não tivesse existido por alguns momentos. Pensar em cada nota que ouvimos nos deixava absortos. E acho que foi um concerto, e foi um evento, que nos deixará pensativos por muito tempo. Deu pra entender, porque Luigi Nono é tão importante, e porque seu centenário não poderia ter passado em branco.
P.S / correções:
O texto sofreu alterações nesta madrugada do dia 17/12. Recebi apontamentos do prof. Felipe Ribeiro. Corrigi o termo “altofalantes”, que estava escrito errado, e o mês do anivesário de Nono.
Eu cometi um erro ao afirmar que Lugi Nono compôs Das atmende Klarsein para Flauta Hiperbaixo. Entendi errado a partir da fala da professora Marta Castello Branco sobre a colaboração de Nono com o flautista. Acho que Roberto Fabbriciani se notabilizou pela criação da flauta hiperbaixo, mas não foi para este instrumento que Nono compôs a peça, e sim para flauta baixo. Seria, mesmo, impossível adaptar timbre e características acústicas tão específicas para outro instrumento. Deixei riscados dois trechos onde esse erro meu aparece.
Felipe Ribeiro me informou que o tape de …sofferte onde serene… foi gravado pelo notável pianista Maurizio Pollini. Tocar esta peça é uma oportunidade para um pianista fazer duo com Pollini… E, na verdade, essa informação aumenta o tamanho do feito de Horácio Gouveia ao interagir com o tape em tão alto nível de sofisticação sonora.
Outros textos:
Sugestões de leituras correlatas, abaixo
O artigo “Música contemporânea em Curitiba: um ensaio histórico”, publicado na revista TOM Caderno de Ensaios UFPR, v. 4, n. 8, p. 14-49. O volume completo está disponível neste link.
Ensamble Móbile faz hoje 5 estreias no SiMN (texto de 2016)
Perdemos Gilberto Mendes e Pierre Boulez (texto de 2016)
Homenagem aos 85 anos de Edino Krieger: Osvaldo Ferreira e a Sinfônica do Paraná (texto de 2013)
Deixe um comentário