O romance Seara vermelha foi publicado por Jorge Amado em 1946. Segundo a lista de publicações que consta no verbete da Wikipedia em português, foi o 13º livro do autor, e o 10º romance. A edição que li é da coleção das obras completas que está sendo publicada agora pela Editora Cia. das Letras. Comprei uma versão kindle, que no momento parece ser a única disponível.
Partido comunista e realismo socialista
O livro pode ser classificado na fase realismo socialista do autor, situado entre a biografia de Luís Carlos Prestes (O cavaleiro da esperança, 1942) o livro de viagens O mundo da paz (1951) e a trilogia Os subterrâneos da liberdade (1954) sobre a saga do movimento comunista durante o Estado Novo.
Em relação à estética do realismo socialista, Seara vermelha é um livro multifacetado, o que ajuda a provar o valor de Jorge Amado como escritor que tensionou sua relação entre militância no partido e liberdade de criação.
Em 1946, quando saiu o livro, a estética do realismo socialista não era aplicada no Brasil como determinação do partido, coisa que aconteceu de modo muito forte entre 1948 e 56. Em 1958 Jorge Amado sacudiria a poeira do estalinismo com Gabriela, cravo e canela, e mais tarde com a não autorização para novas edições de O mundo da paz – seu livro mais claramente propagandístico (a crer nas explicações do autor em suas memórias no livro Navegação de cabotagem).
Jorge Amado acabava de assumir como deputado constituinte eleito pelo PCB, e teria alguns anos de severas limitações à sua atividade criativa, atuando como militante e como deputado. De certa forma, pode se dizer que Seara vermelha serve como uma tentativa de reintroduzir o Partido Comunista na normalidade da política brasileira. O partido tinha sido clandestino e perseguido durante todo o Estado Novo (1937-45) mas principalmente desde o levante de 1935 (por alguns chamado de “intentona comunista” – termo que os historiadores não adotam mais).
Para relançar o PCB em um momento de abertura política e da livre concorrência do partido nas eleições de 1945, nada melhor do que uma reabilitação dos revolucionários de 1935. E Jorge Amado, de certa forma, faz isso no livro. Mas não apenas.
Planos narrativos
Na escrita do livro, Jorge Amado se utiliza de vários planos narrativos, matizando os interesses mais diretos do PCB em uma narrativa difusa inserida no contexto da chamada “literatura social realista”, também conhecida no Brasil como “romance de 30”.
Assim, a narrativa começa com uma família de meeiros vivendo no sertão, e atinge seu ápice no momento de ruptura, em que os meeiros são expulsos da terra e viram retirantes. A obra acompanha a longa viagem até chegar em São Paulo, e aí faz coro com outras obras primas dessa literatura, como as obras de Graciliano Ramos ou outros escritores realistas do período que também tratam da miséria nordestina.
Mas após acompanhar a família de retirantes, que pode ser definida como os protagonistas da história, Jorge Amado constrói um interessante panorama. Mais ou menos como se tentasse descortinar as opções disponíveis ao sertanejo pobre dos anos 1930 no Brasil.
O núcleo principal da família torna-se retirante. Seu caminho será atravessando a pé a caatinga. Depois pegando o barco pelo São Francisco para ir até o interior de São Paulo, e dali tomar o trem para a capital. Nem todos chegarão ao eldorado da capital, mas isso prefiro não comentar para não estragar a experiência de quem vai ler o livro.
Ao longo dessa história começamos a descobrir que partes da família já tinham saído antes das terras. Estes personagens assumem protagonismo em narrativas paralelas que vão ganhando mais importância ao final do livro. São os irmãos mais velhos, que saíram das terras antes do episódio da expulsão dos meeiros.
Retirante, beato, policial, jagunço
Por isso acho que posso afirmar que o personagem principal não é uma pessoa, ou várias. Mas a família na qual a história está centrada. É um casal de agricultores com seus filhos e netos, e uma tia louca agregada. Cada um dos membros da família desdobra-se entre as múltiplas possibilidades que vão se oferecendo aos campesinos pobres do sertão.
Entre os retirantes que tomam o rumo de São Paulo, um abandona a família na caatinga. Ele vai se casar e ficar como lavrador nas terras do sertão. Uma das filhas é aliciada e acaba caindo na prostituição. O pai consegue chegar a São Paulo mas não com saúde suficiente para o sonhado trabalho.
Mas os maiores protagonistas são os irmãos que tinham abandonado a família antes da expulsão das terras. E a tia louca que se junta aos beatos.
Jorge Amado consegue fazer uma forte ambientação destes vários personagens, que acabam se encontrando na trama, de maneira muito inusitada. A tia louca que abandona os retirantes para ser recebida como santa entre os seguidores do beato Estêvão. O filho que tornou-se policial. Seu irmão que se tornou cangaceiro, do bando do temido Lucas Arvoredo.
Jorge Amado leva toda esta trama – beatos, policiais e cangaceiros a um desfecho trágico. Como se negasse a possibilidade de saída por algum destes caminhos. Nenhuma das opções de fuga da lide com a terra e da miséria no campo se torna viável. Entre os retirantes, poucos chegam a São Paulo em condições de viver bem. Os que ficaram no sertão são apanhados pelo trágico desfecho. Resta apenas o filho que entrou para o exército, e que se tornou comunista.
O herói comunista
Este é o verdadeiro herói do romance, mas isso só se torna claro no final. É certamente a parte da obra mais vinculada à estética do realismo socialista e a que mais envelheceu.
O rapaz engajou no exército, e também no partido comunista. Tornou-se o principal líder no levante que levou os comunistas a governarem a cidade de Natal por cerca de 4 dias. Com a derrota do movimento e a repressão, termina preso.
É o personagem com menos profundidade na obra, como não poderia deixar de ser. Afinal, é a parte da obra que praticamente não tem escrita autoral, mas segue as regras do partido. Os heróis não podem ser vacilantes, as tramas não podem levar ao desespero.
Hoje quando lemos a obra, provavelmente nos chama mais à atenção a vívida descrição da miséria do sertão, a trama dos retirantes, a vida intensa e dramática dos beatos, jagunços e policiais. Essa a parte do livro onde o grande romancista aparece, talentoso.
A parte sobre o cabo comunista, líder da revolta de Natal, soa muito como um panfleto, uma obra de propaganda. Ao sabermos dos desdobramentos posteriores à publicação da obra a visão positiva do herói comunista soa no mínimo ingênua. Falo da cassação do registro do PCB em 1948 e clandestinidade do partido até a década de 1980. Ou do golpe de 1964 e o Regime Militar no meio do caminho.
Crise do realismo socialista e do PCB
Continua interessante captar esse momento, logo após o fim da segunda guerra mundial, em que romances publicados no ocidente ainda podiam ter comunistas como heróis. Quando as possibilidades políticas ainda estavam abertas. E quando as tensões entre grandes modelos políticos concorrentes impulsionaram a reconstrução do mundo e a chamada “era de ouro” do crescimento econômico e do Estado de bem-estar social.
Aliás, “era de ouro” e Estado de bem-estar social dos quais o Brasil ficou fora, diga-se de passagem. Como aliás, a inviabilidade dos caminhos traçados pelos camponeses pobres da obra de Jorge Amado já deixava muito claro.
No mais, seguimos, 70 anos depois, interditando os caminhos de saída de nossa condição crônica de pobreza, miséria e desigualdade.
Jorge Amado continua muito útil e atual, não?