Dando sequência às minhas resoluções de ano novo, pretendo continuar postando textos de apoio às aulas das disciplinas que estou ministrando em 2016. Outro dia postei aqui alguns assuntos sobre a primeira aula de História da Música Brasileira, hoje coloco informações sobre a segunda aula de História da Música IV.
A primeira aula da disciplina não teve post, foi a apresentação dos pressupostos teóricos, conteúdo da disciplina, autores, forma de avaliação e tal. O plano de ensino está disponível na aba Material de Aula neste blog.
A aula 02 teve como tema duas obras seminais da vanguarda no século XX: o Pierrot Lunaire de Schoenberg (1912) e a Sagração da Primavera de Stravinsky (1913). Ambas as obras estrearam em épocas próximas, e marcaram, cada uma a seu modo as principais correntes da música do século XX. Ambas as obras foram muito marcantes e influentes, e os compositores foram os maiores líderes de escola no século XX.
Um dos livros mais influentes sobre a música do século XX é A música moderna, de Paul Griffiths, publicado no Brasil pela Zahar. Esse autor levanta a ideia, a meu ver bastante convincente, de que Schoenberg lidera uma corrente de vanguarda germânica, que guarda ligação com a tradição que remonta a Bach, Mozart, Haydn e Beethoven, passando principalmente por Wagner e Mahler. Essa tradição tem profunda ligação com a construção do sistema tonal, e buscou sua superação pelo caminho dos cromatismos e modulações, chegando a um atonalismo que é quase um “turbo tonalismo” (termo meu, não do Griffiths), ou, como preferia o próprio Schoenberg – “pan tonalismo”. Essa corrente iria desembocar no dodecafonismo (a partir da década de 1920) e no serialismo (na década de 1950).
A outra corrente, da qual Stravinsky foi o líder principal, tendeu a ser sediada em Paris, mas aglutinou compositores franceses, do leste europeu ou de outras partes do mundo. Essa tradição remete mais às pesquisas de Debussy e Mussorgsky, e buscou superar o tonalismo inoculando elementos modais, acordes e escalas sintéticas, polirritmia, politonalismo e outros efeitos não derivados logicamente da tradição clássica.
Para entender um pouco mais o sentido da tradição germânica e o processo de dissolução do tonalismo antes de chegar em Schoenberg demos uma olhada no caso do acorde inicial de Tristão e Isolda de Wagner.
Pierrot Lunaire
Gravações completas desta obra podem ser ouvidas no youtube. Ouvimos as primeiras peças na aula, observando alguns detalhes na partitura.
Trata-se de um ciclo de canções sobre textos do poeta francês Albert Giraud, traduzidas para o alemão por Otto Hartleben. São peças curtas, e o ciclo foi pensado para um pequeno conjunto de 6 músicos e um regente – o que facilitou muito a execução da obra em várias cidades europeias. A instrumentação envolve narrador (ou melhor, voz em Sprechgesang), piano, flauta (alternando com flautim), clarinete (o mesmo músico toca clarone), violino (ou viola) e Cello. No geral cada peça usa a voz e o piano mais 3 instrumentos, usando as combinações de timbres para reforçar o sentido poético.
No Brasil temos a facilidade de termos uma tradução musical/poética por Augusto de Campos. Saiu no livro Música de invenção, publicado pela editora Perspectiva. Augusto de Campos (como os colegas concretistas) é um dos poucos capazes de traduzir poesia respeitando os números de sílabas e acentos. Quer dizer que é possível cantar a versão dele em português com a mesma música do original schoenberguiano que funcionaria.
Prestamos um pouco mais de atenção na 4ª peça – Eine blasse wascherin, porque nela se pode observar uma técnica muito interessante criada por Schoenberg, que chamamos “melodia de timbres”. Tem explicações aqui.
Sagração da Primavera
Se Pierrot Lunaire teve boa repercussão em certos meios literários e artísticos, deve-se basicamente a ter sido apresentada a públicos mais predispostos à vanguarda. Já Stravinsky fez a estreia de sua peça para o público conservador dos balés, acostumado ao padrão Tchaikovski, o que amplificou o potencial de escândalo da obra.
Uma boa reconstituição do que deve ter sido a reação do público está no filme Coco Chanel e Igor Stravinsky. Tem a cena da estreia do balé no youtube.
A obra foi composta sobre o argumento de Nicolas Roerich, retratando o ritual de saudação da primavera feito pro tribos da Rússia pré-histórica. Uma jovem era selecionada e deveria dançar até a morte. A coreografia foi de Nijinski. Era o terceiro balé de Stravinsky para a companhia Os balés russos de Diaghilev (as anteriores foram Pássaro de fogo e Petroushka) e, se as outras obras já eram bem avançadas, essa foi além no intuito de retratar os “primitivismos” dos rituais pagãos.
Além do uso de uma orquestra muito grande, com combinações de timbres muito inovadoras e uma série de efeitos harmônicos e linhas melódicas que teriam longa influência sobre outros compositores, parece que o maior efeito da Sagração esteve na organização do ritmo. Muito mais do que na obra de Schoenberg, aqui no Stravinski o elemento rítmico vem ao primeiro plano, com compassos irregulares, alternância de compassos e deslocamentos de acentos.
O trecho inicial, por exemplo, tem mudança de compasso em todos os compassos, além de quiálteras e fermatas.
Mas a força rítmica aparece mais acachapante depois da introdução orquestral, quando os dançarinos surgem em cena, no trecho chamado Presságios da primavera.
Nesta seção Stravinsky coloca as cordas tocando em forte, stacatto e no talão do arco, atacando notas repetidas e deslocando acentos por entre as colcheias do compasso 2/4. Todo o trecho constrói variações rítmicas em cima de um acorde repetido. O acorde parece construído por sobreposição, pois parte da orquestra faz um Ré b menor (Dbm) e outra parte um Mi b com sétima de dominante (Eb7). [As 8 trompas em fá estão escritas 5ª acima do que soam.]
Ouça o trecho e calcule o susto das elegantes senhoras que frequentavam o Théâtre des Champs-Élysées em 1913:
Para conhecer melhor a obra, não deixe de ver o excelente hotsite desenvolvido pela San Francisco Symphony.