A programação 2016 do Teatro Municipal de São Paulo já foi divulgada. Faço neste post um comentário do ponto de vista de quem mora fora da cidade.
O Teatro Municipal é certamente um dos palcos mais importantes de uma das cidades mais importantes do mundo. No hemisfério sul do globo, provavelmente São Paulo só é comparável em termos de teatros musicais com cidades australianas, além de Rio de Janeiro, Buenos Aires, Montevidéu, Caracas, Santiago. A cidade poderia ter uma vida musical comparável à de metrópoles da Europa, EUA, Canadá ou Japão, pelo tamanho e riqueza que ostenta. E o Teatro Municipal foi o primeiro palco a colocar São Paulo no caminho da civilização, com bastante atraso em relação às outras metrópoles sulamericanas mencionadas, todas com vida muito dinâmica desde o século XIX.
Construído como um teatro de ópera, o Municipal de São Paulo paga a pena de existir num país onde não existe ópera. Sim: o Brasil passou o século XIX e a maior parte do XX sendo um comprador de espetáculos de companhias italianas, de valor cultural bastante duvidoso, mas servindo com exatidão aos seus principais propósitos: o orgulho besta de classes dominantes retrógradas e o lucro fácil de empresários espertos.
Espera-se mais do nosso país no século XXI. Embora nosso nível de exigência cultural continue baixíssimo e, provavelmente, esteja caindo mais. Particularmente na música de concerto, apesar de muitas iniciativas louváveis e várias orquestras melhorando de nível de maneira impressionante em décadas recentes. Pior ainda na ópera: neste gênero somos um país sem teatros, sem companhias e sem programação, apesar do bom trabalho isolado de ótimos cantores e maestros dedicados.
Neste sentido, a programação 2016 do Teatro Municipal merece ser comemorada e elogiada. O Teatro passa por diversos problemas bem graves de gestão e financiamento, há bastante tempo. As prefeituras das últimas décadas parecem não ter dado muita atenção à programação artística do teatro, e neste sentido a gestão de Haddad se destaca positivamente.
A programação de 2016 confirma o que estou dizendo. Pra quem mora em São Paulo, o Teatro Municipal terá muita coisa boa pra se ver, de música coral, orquestra e de balé. Para mim, que moro em outra capital, e teria que viajar para São Paulo para assistir alguma coisa, pareceu pouco interessante.
Imagine alguém que, como eu, vai gastar passagem e hospedagem para assistir um concerto. Como estou a cerca de 400 km da cidade, não é tão longe que seja impraticável, nem tão perto que deva ir para alguma coisa que não valha MUITO a pena.
Basta dizer que nunca fui a São Paulo para assistir alguma coisa do Municipal, mas estou planejando fazer isso em 2016. Por quê?
Vejam a programação de óperas para a temporada deste ano:
Puccini, La Boheme, 7 récitas entre 30 de abril e 8 de maio.
Shostakovich, Lady Macbeth de Mtsensk, récitas de 12 a 17 de julho.
Richard Strauss, Elektra, 7 récitas entre 9 e 20 de outubro.
Carlos Gomes, Fosca, 7 récitas entre 7 e 17 de dezembro.
Quatro óperas em um ano é uma programação tímida para o tamanho da cidade e a importância do teatro. Mas, consideradas as ressalvas que fiz acima sobre sermos um país sem ópera, e levando em conta os permanentes problemas financeiros que assolam as instituições culturais no país, o TMSP faz bonito, procurando ser relevante na escassez.
O Puccini eu não vou assistir. Não que a obra não valha a pena, é que eu sei que poderei ver outras vezes, provavelmente na minha própria cidade. Talvez não numa montagem tão boa, mas não importa. Mas Lady Macbteh, Elektra e Fosca acho que vale a pena sair daqui de Curitiba para ir assistir.
Acho que nunca foram e provavelmente nunca serão apresentadas na minha cidade. Também não é um acontecimento recorrente em São Paulo, e desconfio que sequer sejam repertório nos principais teatros de ópera do mundo (a do Strauss deve ser das 3 a que mais fica em cartaz).
São duas óperas modernistas de importância inegável e uma ópera brasileira que talvez seja a principal criação do nosso país neste gênero.
As três óperas de Strauss estreadas entre 1905 e 1911 foram um marco na música europeia. Vários críticos já tentaram dizer quando começou a música do século XX, e quais marcos foram mais definidores. Alguns apontam a estreia da Sagração da Primavera em 1913, Paul Griffiths considera o Prelude à l’après-midi d’un faune de Debussy como uma obra seminal. Mas Alex Ross afirma que o século XX é marcado principalmente pela estréia de Salomé, em 1905. A fase mais criativa e mais impactante de Strauss seguiria com Elektra, estreada em 1909 e Der Rosenkavalier em 1911. Elektra é certamente uma das obras mais importantes do século XX, e provavelmente uma das mais importantes obras do repertório alemão. Talvez a maior, pra quem se autodeclarar sem a paciência e a dedicação necessárias para as obras de Wagner, como é o meu caso.
A ópera de Shostakovich que o Municipal vai apresentar marca o fim do momento mais criativo do compositor russo. Depois de ter sido um prodígio da vanguarda musical no momento mais rico da vida cultural soviética, a Lady Macbeth de Shostakovich lhe valeu uma condenação no Pravda, o enquadramento pelo regime de Stálin e seguidas prisões, ameaças de morte e outras amenidades. Além dos diversos outros motivos que tenho para me interessar por esta obra, só esse já vale: condenada pelo stalinismo, só pode ser coisa interessante.
Fosca é considerada por muitos como a obra prima de Carlos Gomes. O único compositor brasileiro a ter se inserido significativamente como compositor de óperas no mercado italiano, e o primeiro caso de reconhecimento da música brasileira na Europa, o compositor de Campinas continua sendo inexplicavelmente ignorado por nós. Exceto o massacre sonoro da Abertura de Il Guarany, de longe a música mais executada de todos os tempos no país (e provavelmente a mais mal executada também), Carlos Gomes continua sendo nunca apreciado no Brasil.
Como eu já disse, somos um país sem ópera, e por isso nosso único compositor relevante do gênero é simplesmente inexistente na nossa programação. Somos tão ruins nisso que nos damos ao luxo de montar ópera italiana do século XIX na maioria das vezes, e deixamos pra trás nosso compositor mais importante. Se a obra não tivesse qualidade musical nenhuma, já bastaria isso pra nos obrigar a assisti-la (quem se interessa por ópera, é claro).
Mas acontece que tem qualidade musical, e muita. Um pouco do porque Carlos Gomes merece ser ouvido está explicado em um texto que escrevi sobre ele. Não preciso repetir aqui.
Então é isso. Se precisar de um motivo para passear em São Paulo, provavelmente você terá, com a programação do Teatro Municipal em 2016, principalmente as óperas. Mas não faça como eu, que já fui uma vez a São Paulo e tentei comprar ingresso na hora – simplesmente não existe. É preciso fazer uma assinatura anual, ou comprar ingressos com muita antecedência. Como o Brasil tem pouquíssimo destas coisas, os lugares esgotam MUITO antes. Hoje está na fase de trocas de assinaturas (a renovação já passou). Assinaturas novas abrem dia 21 de janeiro e ingressos avulsos abrem para venda dia 15 de fevereiro.