Edney Silvestre – A felicidade é fácil

Capa do livro de Edney Silvestre
Capa do livro de Edney Silvestre

No texto que escreveu para a orelha do livro do colega, o escritor Luiz Ruffato diz que, apesar dos elementos típicos da narrativa policial, trata-se de um “romance político, gênero difícil e quase inexplorado no Brasil”. Eu não sei se é tão inexplorado assim. Pega até mal dizer isso num país que teve Jorge Amado, Érico Veríssimo, e vários outros escritores de envergadura que tiveram a política como assunto de fundo permanente.

Talvez o Ruffato estivesse pensando neste gênero que surgiu nos EUA nos anos 1970, quando jornalistas começaram a fazer reportagens como se fosse literatura, e escritores escreveram romance como se fosse reportagem. Eu acho que sim, porque o livro do Edney Silvestre não tem nada do estilo literário do romance realista que os modernistas estabeleceram como base do “romance político” no Brasil. É um livro que tem a escrita leve de uma reportagem, só que usa recursos narrativos muito mais amplos. Não por acaso, ele primeiro fez uma carreira jornalística, e depois tornou-se escritor – este é o seu segundo livro publicado.

De romance policial (outro gênero que me parece muito bem explorado pelos escritores de língua inglesa) tem essa coisa da expectativa de desvendar o crime, adivinhar a história, que vai sendo construída sobre uma linha suspensiva que só se revela no final, que deve ser sempre inesperado.

Pra mim o Edney Silvestre chegou a um ótimo resultado. É um livro que a gente lê numa sentada (no meu caso foram duas, porque comecei num horário que não dava para terminar direto) – e realmente é bem difícil concordar em largar o livro para fazer outra coisa, porque é aquele tipo de história que prende.

O livro tem um mergulho profundo na psicologia dos personagens, que são variados, de diversos países, diversas origens, diversas posições sociais. O autor tem a habilidade notável de construir um personagem profundo em poucas linhas, um pensamento de alguém delineia toda uma visão de mundo. Vários personagens secundários aparecem e desaparecem sem deixar vestígios na história, eles estão ali só pra compor um panorama do mundo naqueles tristes anos do governo Collor, quando o Brasil mal saía das fraldas de sua ditadura recente.  Aliás, a escória que a ditadura nos legou (não só a nossa, mas as outras ditaduras latino-americanas também) compõe o lado sórdido da trama, com crimes, corrupção, arbitrariedade e violência policial, oportunismo, cinismo.

É um baita livro.

Mais do que contar uma história de ficção, conta uma história do que foi o Brasil num passado recente, do qual a gente não gosta muito de lembrar, mas são aqueles demônios com os quais a gente tem que ajustar contas, sob pena de nunca avançar. O mais legal é que esse Brasil está ali, escancarado, sem nunca precisar fazer força pra isso. O autor desenvolve tudo com naturalidade, o livro é divertido e soa familiar tanto quanto as melhores coisas que o cinema brasileiro vem produzindo recentemente. Aliás, não duvido nada que vire filme logo.

Comprei o livro por causa da curiosidade que passei a ter pela nova literatura brasileira depois que li o interessantíssimo depoimento do Michel Laub sobre a participação na feira de Frankfurt, cuja edição 2013 foi dedicada ao Brasil. Tá na edição 86 da Piauí.

Férias de verão são uma ótima ocasião para literatura, especialmente para quem não se organiza para ter tempo pra isso na correria normal do ano. Tempos atrás eu também gostei muito do Miltom Hatoum, de Dois irmãos. Isso agora faz parte do meu novo programa, que é intercalar autores brasileiros contemporâneos naquela interminável lista de clássicos a ler antes de morrer, que acho que todo mundo tem guardada em algum lugar (em papel ou na cabeça).

No Amálgama também saiu uma resenha do livro, na época do lançamento. Mas eu acho melhor você não ler antes de ler o livro, porque ela revela demais a trama, e eu acho que isso faz perder um pouco a graça. Talvez seja mais interessante ler primeiro a entrevista que o autor deu ao Renato Tardivo, também no Amálgama.

A entrevista é muito boa mesmo, corra ler. Quase que torna desnecessário qualquer coisa que eu escreva aqui sobre o livro. É uma conversa franca sobre o trabalho de escritor, a carreira de Edney Silvestre, o processo criativo e a recepção crítica do livro. Entre as várias coisas que chamam a atenção na entrevista, está uma pergunta que menciona o termo “entretenimento”, e que leva a uma resposta um pouco indignada do escritor. Eu gosto muito deste tipo de conversa, por que é um assunto que eu tento trabalhar nas minhas aulas. Em música também existe (talvez mais do que em literatura) essa dicotomia entre “entretenimento” e “alta cultura” – uma coisa totalmente idealismo alemão, bastante fora de sentido no século XXI (no Brasil é fora de sentido em qualquer época, mas é uma ideia que tem muita força – veja por exemplo como Machado de Assis sacou isso na relação entre polcas e sonatas).

Curioso que o Edney Silvestre respondeu sobre isso defendendo a complexidade dos personagens que elaborou, usando como exemplo o Major, motorista e segurança de Olavo. Na verdade ele podia usar qualquer personagem, porque todos são muito bem construídos e complexos. Mas pra mim o mais impressionante é como um personagem pode ser construído em poucas linhas, e com isso abrir um mundo, uma época, uma classe social inteira. O melhor exemplo seria o policial militar que volta do comício das Diretas Já na praça da Sé em 1984, no ônibus da corporação ele lamenta e não lamenta ter perdido o aniversário da filha porque estava trabalhando. É uma história secundária, o livro podia ir bem sem ela, mas o jeito como o Edney reconstrói o personagem entrando nas suas breves reflexões e depois largando-o para nunca mais aparecer na história sintetiza muito bem o que é a força deste escritor.

Não sei se é tão necessário alongar essa discussão aqui, mas só pra pontuar minha posição: cultura e entretenimento são misturados de forma indissolúvel, e não é nenhuma vergonha uma obra ser de fácil acesso ao público. Pelo contrário. E divertir não é demérito, é qualidade. São muito fartos os exemplos de produções que primeiro são tachadas de coisa vulgar para depois de anos, décadas ou séculos tornarem-se supra-sumo de alta cultura. Talvez o maior exemplo seja Shakespeare.

Da questão entretenimento x alta cultura me veio outra coisa muito importante que está no texto do Michel Laub sobre a participação do Brasil em Frankfurt. Parece que teve gente que achou ruim o governo gastar R$ 18 milhões para promover literatura brasileira no exterior. Bom, isso é política cultural meu caro, e se governos não puderem fazer isso servirão pra que? Para ter uma ideia da mesquinhez de quem critica um troço desses, R$ 18 milhões é menos da metade do que a prefeitura de Curitiba gastou para fazer a trincheira da Gustavo Rattman, se é que me entende.


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