Acabou de sair a convocação dos responsáveis pelos projetos aprovados no edital de 2012 do Mecenato da Fundação Cultural de Curitiba. Está aqui.
Eu tive o desprazer de fazer parte da subcomissão de música. Desprazer não pelos projetos a serem avaliados, via de regra com uma qualidade e nível de profissionalismo que não deixam dúvidas. Muito menos pelos colegas de comissão, que trabalhar com o Sérgio Albach e o Martinho Lutero Klemann são das coisas mais agradáveis que um sujeito como eu pode fazer.
Desprazer porque foi insanidade minha aceitar essa incumbência do Fórum de Música, que eu já tinha serviço demais nessa vida, e o trabalho na comissão consumiu muitíssimas horas sem nenhum puto de remuneração. Resta a lição de vida de ter aprendido algo sobre meandros do mercado que é uma experiência que acho que ainda vou usar algum dia. Por outro lado, o trabalho de avaliar 200 projetos só foi possível porque eu conhecia razoavelmente bem o trabalho da maioria absoluta dos grupos e dos músicos que estavam propondo projetos.
Mas não é para chorar minhas pitangas que estou escrevendo este post. Afinal, ajoelhou tem que rezar, e se eu aceitei o serviço, fiz tudo para cumprir a atribuição com galhardia, passando metade das minhas férias de janeiro metido nesse trabalho praticamente em dedicação exclusiva.
O que eu queria mesmo dizer, é que esse trabalho evidenciou pra mim a qualidade do meio musical curitibano, e o nível de profissionalismo que foi alcançado na cidade. Foram 161 projetos aprovados, porque apresentaram argumentação consistente, viabilidade técnica e qualidade artística. Eu me lembro bem como eram as coisas por aqui há uns 15 ou 20 anos atrás. O amadorismo grassava, talvez não houvesse um músico na cidade capaz de escrever um projeto fundamentado. Produtores capazes de organizar eventos não existiam mesmo. Vivia-se de consumir música do eixo Rio-São Paulo e papagaiar música européia em orquestras públicas que davam uma fama de cidade polo de música clássica.
Agora a coisa mudou completamente de figura. São literalmente centenas de produtores e músicos capazes de estruturar projetos consistentes, e passa do milhar o número de músicos profissionais envolvidos, com uma qualidade impressionante tanto dos compositores como dos arranjadores e instrumentistas. Há vários estúdios capazes de atender o pessoal, e muito mais espaços possíveis de circular a produção local.
O salto do Tigre será quando a gente conseguir mudar essa lei que provoca hoje distorções inconcebíveis.
Em primeiríssimo lugar: não faz o menor sentido a prefeitura reservar uma parte de seu orçamento para apoiar projetos culturais e tranformar este recurso em renúncia fiscal para depois deixar as empresas selecionarem quais entre os projetos aprovados irão receber o recurso. Esse modo de operação do Mecenato causa diversas distorções gravíssimas, que já estão começando a entravar o desenvolvimento do meio musical local. Até o ano passado, me parece que a comissão tinha algum cuidado em reprovar projetos para não extrapolar a verba disponível, o que causava dois problemas básicos – projetos com muito mérito eram reprovados sem justificativa consistente, e outras áreas artísticas (artes cênicas, artes visuais, audiovisual) levavam vantagem em captar mais recursos.
Pensando em nível de estratégia de políticas culturais, se é para o projeto ser totalmente financiado pelo Estado, não faz sentido obrigar os produtores a mendigar nas empresas, porque, entre outras distorções, isso está gerando um inflacionamento dos custos de todos os tipos de serviços envolvidos, bem como o desperdício de até 7,5% da verba que fica para remunerar a cafetinagem dos “captadores de recursos”.
Mais aí esbarra-se na visão tacanha do próprio meio musical, pois segundo me informaram, já houve proposta de eliminar o Mecenato e passar tudo para o Fundo Municipal de Cultura.
Qual a diferença entre Mecenato e Fundo? Basicamente a diferença é que no Fundo o proponente do projeto recebe o recurso público diretamente para a realização do seu projeto, enquanto no Mecenato ele precisa de uma empresa que repasse para ele o mesmo recurso público via incentivo fiscal.
O Mecenato só faria sentido, do ponto de vista de uso do dinheiro público, se estivesse fomentando um mercado de apoio à cultura entre as empresas, mas para isso seria necessário que as empresas fossem obrigadas a dar uma contrapartida de recursos próprios, e não pudesse fazer o apoio totalmente com verba pública. De qualquer forma, uma lei que exigisse isso (se não me engano já foi assim no passado) só faria criar um mercado de notas frias para empresas fingirem que estão apoiando alguma coisa.
Mas então porque continua havendo resistência da classe musical em fazer tudo virar Fundo, e acabar com o Mecenato? Eu não sei, pois é tudo um diz-que-me-diz-que e o Fórum de Música padece dos problemas normais de assembléias amplas, onde o mais difícil é chegar a qualquer consenso sobre qualquer coisa. Entretanto, suspeito que seja o formato dos atuais editais do Fundo que tem assustado os músicos. Imaginam que acabar com o Mecenato seria acabar com a possibilidade hoje existente de o sujeito ter uma ideia qualquer e apresentá-la para captar recurso público, pois no fundo o formato dos projetos já está determinado pelos editais.
Aliás, estão abertos alguns com inscrições a vencer em março:
Música no Teatro Paiol – edital aqui – 10 projetos inéditos a funcionarem entre julho e dezembro, com R$ 55 mil por projeto. Inscrições até 6 de março.
Música nos parques – edital aqui – 24 projetos a funcionarem entre setembro e março, com R$ 5 mil por projeto. Inscrições até 22 de março.
Difusão em Música – bandas – edital aqui – 2 projetos de gravação de CD de bandas de “rock” ou “pop”, com R$ 90 mil para cada projeto (não consigo entender pra que esse edital, porque gravação de CD é uma coisa que já está muito bem contemplada no Mecenato). Inscrições até 18 de março.
Música de Câmara na Capela Santa Maria – edital aqui – 10 projetos, sendo 2 solos, 2 duos, 2 trios, 2 quartetos e 2 quintetos. A remuneração prevista é de R$ 5 mil por músico (ou melhor, R$ 5 mil para solo, R$ 10 mil para duo, e assim por diante). Inscrições até 2 de março.
Ópera ilustrada – edital aqui – 4 projetos de “concertos líricos”, com R$ 40 mil para cada projeto. Inscrições até 5 de março.
Nos editais diz para se procurar informação no sítio da Fundação Cultural, mas os links não estão funcionando. O jeito é consultar pessoalmente no endereço informado: Rua Engenheiros Rebouças, nº 1732 – Setor de Protocolo (9h – 12h e 14h – 17h).
No site da Fundação Cultural também é impossível achar esses editais todos, e quem fez o serviço de organizar tudo pra gente foi o blog produtor.org – neste link.
Bem, então vejamos:
É possível abrir editais bem específicos, e todos estes linkados aí em cima são interessantes (exceto o de difusão de bandas, mas discuto isso mais pra frente). Neste tipo de edital você inscreve o projeto e, sendo selecionado pela comissão que avalia, recebe o dinheiro público diretamente para executá-lo. Há também uma outra vantagem, do ponto de vista do bom uso de dinheiro público – o edital tem os limites específicos de recursos, calculados para cada tipo de edital.
No edital do Mecenato, é tudo um grande saco de gatos – ali o limite é de R$ 107 mil por projeto, dos quais até R$ 8 mil ficam com captação e coordenação. Cabe nesa verba desde gravação de CD, DVD, espetáculos musicais, publicação de livros, realização de festivais, etc.
Seria o caso de se abrir, por exemplo, um edital específico de gravação de CD, com limite fixo, pois afinal a gravação de CD via Mecenato virou uma prática sem quase nenhum retorno para a sociedade, pois o sujeito pode gravar um CD com verba pública, enfiar tudo numa gaveta e ficar lá, só pra se exibir pros amigos (via de regra foi o que aconteceu durante muitos anos, e a gente sabe que a verba destinada a CD’s pouco contribuiu para profissionalizar o meio musical ou gerar renda para o trabalho dos músicos). No edital 2012, cujo resultado foi divulgado agora, tentou se coibir um pouco essa distorção, exigindo que os projetos de gravação de CD realizem 6 apresentações de lançamento. Essa exigência cria uma certa movimentação maior, com alguma contrapartida que atinja um público mais amplo, mas não resolve a grande questão, que continua sendo: porque a prefeitura deve destinar recursos públicos a qualquer músico que queira gravar seu CD? Em que isso contribui para a vida musical da cidade? Um edital do Fundo como aquele de “Difusão de Bandas”, só que bem mais amplo, já seria um grande paço para ajudar a desafogar o Mecenato.
Então é isso – estamos num patamar de qualidade artística invejável, acredito que poucas capitais brasileiras tenham tanta boa música sendo feita em condições de captar via leis de incentivo. Mas este patamar, a partir de agora, nos obriga a repensar a lei do incentivo à cultura, um processo que já vem sendo feito no âmbito federal há anos.
Precisamos começar a conceber a produção cultural como uma atividade econômica estratégica, no âmbito da inovação e da economia criativa. Não canso de lembrar sempre que falo do assunto, que os EUA assumiram a liderança da economia mundial no século XX basicamente com estratégias de produção e difusão cultural (especialmente cinema e música popular), e que continua liderando o mundo do século XXI com seus aplicativos de internet. Do mesmo jeito que a Europa conquistou os cinco continentes a partir de sua produção literária e sua música de concerto/ópera. O que o Brasil está fazendo em direção a isso? Pouquíssimo ainda, apesar de a música brasileira ser um produto com altíssimo potencial de difusão internacional.
Comentários
2 respostas para “Os projetos da área de música no edital do Mecenato da Fundação Cultural de Curitiba”
[…] Fonte: http://andreegg.org/os-projetos-da-area-de-musica-no-edital-do-mecenato-da-fundacao-cultural-de-curi… […]
Muito elucidativo, André! Legal mesmo! E, melhor!: Você, por conta própria, está prestando contas, publicamente, do trabalho desenvolvido pela comissão do Mecenato – o que deveria ser feito pela FCC. Muito obrigado pelo retorno público.
Do pouco que entendo, tenho a concordar com o absurdo de estarmos criando atravessadores, captadores e (veja você!), até CURSOS para fazer projetos da Fundação. É um desperdício de tempo e dinheiro. Nossas forças deviam estar voltadas para a cultura e a arte e não em aprimorarmos os meios de lidar com a burocracia…
Já num pequeno ponto discordo: A produção de CDs via Mecenato ou Fundo contribuiu sim, creio eu, no passado, para a nossa profissionalização. Os estúdios e os produtores ficaram melhores; e os músicos aprenderam a trabalhar com maior profissionalização. Mas concordo que muito CD ruim foi feito para massagear o ego de quem não tinha um mínimo de entendimento do que é música, arte e cultura… Vá lá!
Outra coisa que me incomoda. Não há categoria CANÇÃO nas Leis de Incentivo. Não há a consciência de que existe uma arte à parte (que não é exatamente só música, tampouco literatura) que é a arte da música MAIS a letra MAIS o modo de cantar. Não acho justo analisarmos apenas como MÚSICA um trabalho que inclui outros elementos artísticos (e que também não pode ser definido apenas como Literatura, embora também o seja). Mas sei que a Lei não julga esse tipo de mérito, e, sim a adequação do projeto… O que nos leva a outro problema: às vezes o projeto é ótimo, o que não quer dizer que o produto artístico/cultural também seja. É bom termos consciência de que criou-se em Curitiba uma verdadeira indústria de projetos, e, com isso, surgiram também os especialistas em camuflar tolices culturais (ou falcatruas dinheiristas) em boas justificativas e planilhas orçamentárias… Mmmm… Obrigado de novo! Abraço!