A peça de Stravinski é um clássico. Porque a palavra se aplica àquelas obras especiais, que não perdem a vitalidade mesmo quando já passou muito o momento original de sua concepção. A Curitiba de hoje não tem nada parecido com a Paris de 1913, onde quase cem anos atrás a peça foi estreada. Entretanto eu diria que o impacto da obra continua hoje como na primeira vez em que foi apresentada. Tirando talvez o lado escândalo das senhoras admiradoras do balé aristocrático que nunca se sentiram tão humilhadas em toda sua vida – reação importante na estreia parisiense de um século atrás, porque desconfio que não haja em Curitiba este público tão aristocrático capaz de se ofender com Stravinski.
Mesmo para quem já ouviu muitas vezes a peça em gravações, ela tem o condão de parecer completamente nova quando a gente ouve ao vivo. Porque a paleta orquestral de Stravinski, talvez até hoje uma das mais ousadas jamais escritas, é daquelas coisas que não dá para ouvir em alto-falantes sem perder o principal. Uma peça em que os detalhes de timbre orquestral são tão importantes, perde muito de seu sentido quando é ouvida de algum modo que não na presença de uma orquestra viva.
E que orquestra. Se faltava alguma coisa que provasse cabalmente a maturidade musical da Orquestra Sinfônica do Paraná e a capacidade de Osvaldo Ferreira em conduzi-la, não falta mais. A Sagração não é uma peça que qualquer orquestra toque – exige solistas competentes em praticamente todos os instrumentos de sopro, trabalhando no limite da técnica tradicional dos seus instrumentos. Exige um regente que seja ensaiador competente, além, claro, de alguém que tem a confiança de sua equipe – senão não há como fazer os músicos se empenharem numa empreitada tão difícil. Exige ainda que as cordas sejam precisas em rítmicas complexas e afinadas em acordes atonais. Tudo isso a Sinfônica do Paraná demonstrou dominar com presteza. Porque o que eu ouvi na noite de sexta-feira não ficou devendo em nada à perfeição das gravações que já conhecia.
Como não podia deixar de ser, o público prestigiou. Afinal, estávamos diante de um dos grandes eventos culturais já acontecidos na nossa cidade e, além do público que tradicionalmente vem ouvir a orquestra (que acho que está crescendo, como fruto do bom trabalho), tínhamos a soma do público de balé, e mais de um monte de gente que talvez não se anime em ver a orquestra em dias normais, mas não queria perder um evento desta magnitude.
Eram quatro dias seguidos, eu fui no segundo dia – e não sobrou um lugar vazio para contar história. O público era um pouco barulhento, como não podia deixar de ser num evento lotado e com freqüentadores talvez não habituados. Mas foi bonito demais ver como a coisa aconteceu. Primeiro a orquestra afina – o público continua fazendo barulho, e já seria normal se aquietar por esta hora. Depois entra o maestro – o público continua barulhento a ponto de irritar freqüentadores habituados ao ritual do concerto. O bailarino que faz o papel de sábio já está em cena, mas ninguém ainda reparou nele pois o palco está escuro, e ele parece ser alguém da equipe testando as coisas e conferindo o cenário. (Não sei se vi André Neri ou Rafael Ribeiro, os dois dançarinos são informados no programa, sem dizer qual o dia de cada um).
O solista já está desenvolvendo suas coreografias no palco, a orquestra está a postos no fosso, o maestro com a batuta semi suspensa esperando a deixa. Nem todos perceberam, mas o espetáculo já começou. Dezenas de pessoas encalacradas com o frio horrível que anda fazendo em Curitiba aproveitam para tossir pela última vez, e parece que o fazem com muito gosto. Alguns do público ainda conversam. Outros fazem “chh”, que é o pior barulho que se pode fazer num lugar onde se deve estar em silêncio – é mesmo muito pior do que conversar ou tossir, mas imagino que quem faz “chh” esteja se achando superior, ou paladino de alguma cultura.
Mas aí acontece uma coisa muito bonita: o solista já está dançando, as pessoas vão percebendo isso aos poucos. E à medida que percebem, vão silenciando, inebriados pela coreografia. Quando a orquestra inicia os sons, segundos após, o público já está em silêncio, cativado, capturado pela beleza da dança. E a sutileza dos primeiros sons (aquele solo de fagote maravilhoso) encontra o ambiente mágico necessário para ganhar vida – está criada aquela atmosfera ritual que a peça precisa para acontecer de verdade.
A coreografia de Olga Roriz é realmente uma coisa impressionante. Precisa um coreógrafo ter confiança na sua capacidade de dizer alguma coisa nova, propondo-se coreografar uma peça tão gigantesca, já coreografada antes por grandes nomes da dança. E a coreógrafa portuguesa dá seu recado.
O cenário é despojado – até o ponto da crueza da música e dos rituais pagãos que se pretende representar. O início da dança do sábio é como já descrevi – uma armadilha para capturar o público antes que a orquestra comece a tocar. Ficam curiosamente invertidos os papéis cênicos – não são os sutis solos de sopros que funcionam como abertura para o balé, mas é a sutil dança do sábio que funciona como introdução para os sons sublimes da orquestra.
Então entra em cena todo o corpo de baile, o negócio se desenvolve duma maneira toda especial. O único elemento cênico são os sacos de areia que os próprios dançarinos carregaram para o palco no início da apresentação. Os montes iniciais vão sendo pisados, chutados, espalhados. Tem muitos momentos em que até os cabelos das dançarinas jogam com as areias do chão do palco.
E a coreografia se desenvolve capturando toda a expressão demoníaca do ritual pagão. Balé e música são tão “uma coisa só” que é difícil lembrar que a coreografia surgiu agora, tanto tempo depois da música. É certo que Olga Roriz dialogou com toda uma tradição de coreografias já feitas sobre a Sagração, e não teria como ser diferente. Como diz a artista no texto do encarte:
Minha sagração. Apenas de escrever ou deixar escapar da boca essas duas palavras, transtorna-me a mente, o coração, a flor da pele. O tempo parece não ter passado desde que, ainda jovem, interpretei o papel da eleita, do coreógrafo Joseph Roussillo no Ballet Gulbenkian. O tempo parece não ter passado desde a primeira vez que vi, em um minúsculo televisor, a versão de Pina Bausch e ter decidido nunca coreografar esta peça. O tempo parece não ter passado desde a polêmica estreia de Stravinski e Nijinsky.
Se eu entendesse alguma coisa do assunto, talvez dissesse que a versão de Pina Bausch foi uma influência capital na versão de Olga Roriz, como ouvi dizer. A própria Olga também já avisa no texto do encarte que sua versão dá mais protagonismo ao sábio, e aborda de modo diferente a eleita, que apresenta orgulho em ser a sacrificada, e não medo.
Eu diria um pouco além – a eleita dança com a certeza de estar cumprindo seu papel na coletividade, devolvendo a vida ao clã que a gerou, para que todos possam ter de novo a esperada primavera. E eu de novo fico triste de não saber se quem eu vi dançando foi Ane Adade, Deborah Chiabiaque ou Alessandra Lange.
De qualquer forma, é isso: a gente sai capturado pela música e pelos corpos que se movimentaram com tanto vigor. Os quarenta minutos passaram como se fossem apenas uns dez – a gente nem se dá conta de que respira. Presenciar este momento fica para sempre na vida de todo mundo que esteve lá, como um dos grandes momentos estéticos que a gente viveu na vida – não tenho dúvida disso.
E uma alegria danada de ver que o Balé Guaíra está vivo, de tirar o mofo daquele fosso orquestral, de ver que os nossos músicos são capazes de tocar com perfeição uma das obras mais difíceis do repertório, de ver que a direção cultural do Paraná está propondo alguma coisa que preste no quinto maior estado do país, de lembrar que vai ter mais apresentações em dezembro, e de ainda saber que o espetáculo vai viajar em turnê por 6 cidades do interior.
É isso aí que se espera dos nossos corpos oficiais. Não menos do que serem relevantes, fazerem o melhor que podem. Darem vida cultural à nossa população tão alheia das coisas interessantes que acontecem no mundo. Mostrarem que a mediocridade não precisa ser uma prisão perpétua para o curitibano. Que a vida é bonita, e que a primavera chega, se fizermos o devido sacrifício.
Comentários
2 respostas para “A Sagração da Primavera de Olga Roriz com o Balé Guaíra e a Sinfônica do Paraná”
Legal, André!
Não vou fazer crítica do concerto, que é um gênero que não cultivo. Mas queria fazer algumas observações:
. Muito bom termos uma montação da “Sagração” em Curitiba, foi sensacional! O teatro lotou (fui no sábado, você disse que foi na sexta e estava cheio, então imagino que houve lotação esgotada nas quatro récitas). Agora precisamos tornar isso rotina. O Osvaldo Colarusso sempre comentava que Curitiba precisa sair do fetiche do festival para entrar na rotina da temporada regular. É exatamente isso! Quando saí do Guaíra, ainda com o coração batendo acelerado, fiquei pensando: quero “Petrushka”, quero “O mandarim maravilhoso”, quero “A criação do mundo”; se conseguimos a “Sagração”, com algum esforço conseguimos tudo!
. Balé é um espetáculo muito absorvente. É visual, a maioria das pessoas é visual. (Não à toa que Stravinsky, espertão, tratou logo de criar uma carreira de concerto para a “Sagração”, obtendo triunfo pleno, sem encenação, apenas um ano depois do fracasso da estreia como balé.) Tenho certeza de que a maioria absoluta da audiência prestou pouca atenção à música. O público geral está mais ou menos habituado à linguagem musical do início do século 20, via música de cinema, então dissonâncias e polirritmos não pareceram chocantes, mas adequados ao que estavam vendo em cena.
. Gostaria de saber qual a parcela do público que foi ao teatro esperando um “balé”, com “música clássica”, “pas de deux” e tudo mais, ao estilo do que se vê em filmes como “Cisne negro”.
. Para quem prestou muita atenção à música, como eu, a gritaria dos bailarinos foi desnecessária. Aliás, entendo e acho muito interessante o conceito do “esforço de uma virgem super fodaça que se sacrifica conscientemente para salvar seu povo”, mas não sei se a música a “mata” tantas vezes assim – eu sempre imaginei uma estocada única e fatal, ponto final. A agonia prolongada da eleita me gerou desconforto e – confesso – não pude resistir a pensar um “MORRE DEABA” nessa hora…
Vi no sábado à noite. Eu vi as mesmas coisas no balé e criei as mesmas expectativas quanto à modernidade dos programas sinfônicos da orquestra.
Eu já tinha assistido ao belíssimo documentário-homenagem (Pina) do Wim Wenders à Pina Bausch. Tive a sensação de cópia e não de homenagem nesta versão do balé no Guaíra. Mas é possível que, para quem nunca viu a versão de Pina nem o filme de Wenders, o balé tenha sido uma novidade entusiasmante.
Também fiquei desconfortável com o final. A dançarina/virgem se joga demais no chão. Aliás, a menos que isso tenha sido areia demais pro meu caminhãozinho estético (e de paciência), fica repetitivo ao ponto do enfadonho e cansativo. Mas é um alívio saber que não é mais uma apresentação requentada de Lago dos Cisnes ou Romeu e Julieta. E a orquestra esteve fantástica.