Este é um texto antigo, publicado originalmente em 13/09/2007.
GARCIA, Walter. Bim bom. A contradição sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
Apesar de ser a publicação resumida de uma dissertação no departamento de Literatura da FFLCH-USP, este livro é um primor de trabalho musicológico. Orientado por José Antonio Pasta Jr e com saudáveis influências de José Miguel Wisnik e Luiz Tatit, que compuseram a banca na ocasião da defesa. Com tal genealogia não podia dar mau resultado…
GARCIA explica por que João Gilberto deve ser considerado o inventor de um estilo musical reconhecível como Bossa Nova. Tal tese pode ter muitos problemas do ponto de vista histórico. Mas a boa musicologia feita pelo autor desmancha as objeções de leitores que, como eu, não concordam com a tese em que se baseia a obra. Concordando-se ou não com o grau de proeminência que se dá a João Gilberto na história da música brasileira, não há como recusar o papel pioneiro do intérprete: como demonstra GARCIA, o baiano sintetiza em voz e violão toda a linhagem anterior do samba jazzificado dos anos 1930, do samba-canção abolerado da década de 1940 e do samba-canção moderno da década de 1950. Na voz e no violão de João Gilberto estão, como demonstra GARCIA, o canto de Orlando Silva e a harmonização de Radamés Gnatalli, o surdo e o tamborim das batucadas de samba (com modificações de acento), e o piano jazzístico de Johny Alf e João Donato.
O autor privilegia o aspecto rítmico, e demonstra que a grandeza do baiano está na relação entre a marcação do baixo e a flutuação do acorde (a tal contradição sem conflitos) que geram um balanço totalmente novo, não especificamente dançante. E não esquece de analisar a relação entre a voz e o violão, a partir da canção manifesto Bim bom.
Me parece que GARCIA é o primeiro a explicar com propriedade a razão da voz contida de João, seguindo a indicação de Luiz Tatit em seu livro O cancionista. Composição de canções no Brasil. Para Tatit a explicação estaria na relação entre canto e fala, abandonando a estética do bel canto. GARCIA traz esta explicação para o detalhe do ritmo. Somente a emissão que João passa a adotar garante a precisão rítmica necessária para que sua voz contracene satisfatoriamente com a batida de seu violão.
Feitos os elogios, sobra espaço para uma crítica. Ela não se direciona ao autor especificamente, mas é uma crítica coletiva. Os trabalhos acadêmicos que vêm sendo produzidos ainda não conseguem romper com um grave vício de origem: deixam-se pautar pela crítica jornalística e pelos memorialistas na escolha dos objetos e das problemáticas, e não propõem nenhuma ampliação no campo de visão nem acrescentam novas fontes. GARCIA não está isento deste problema. Todas as fontes escritas em que se baseia estão publicadas em trabalhos de jornalistas/memorialistas, tendo sido, portanto, por eles selecionadas. Isso não diminui o trabalho de GARCIA, mas aponta uma necessidade de que os pesquisadores façam o trabalho da academia em relação a temas da história recente: o olhar científico, metodologicamente rigoroso, antropologicamente externo ao objeto de estudo. Para isso é importante ir além das análises pautadas pelo jornalismo cultural, e superar certa fortuna crítica de compositores e obras.