Esse é um tema que estou trabalhando nas aulas de História da Música. Antes de chegar no assunto “canto gregoriano”, um fator fundamental para pensar a produção musical da Idade Média, já passamos por outros assuntos que tem temas tratados aqui no blog:
Sobre a notação da música grega antiga
Os cânticos dos cristãos nos primeiros séculos
Além disso, tem aqui um slide com as anotações sobre o pensamento musical de Boécio.
Este post é também uma reorganização de algumas informações que já estavam em dois posts do ano passado, onde podem ser pesquisados mais detalhes:
Quando começa a História da Música?
Sobre o surgimento da notação musical durante o período carolíngeo
Basicamente, o negócio é o seguinte: tem pouca informação sobre canto gregoriano na Idade Média, e a pouca informação que tem é guardada por instituições eclesiásticas que, obviamente, tem interesse em defender alguns pontos de vista e mistificar as coisas. O conhecimento sobre canto gregoriano que tem sido veiculado nos livros de história da música em geral é muito dependente da visão do assunto divulgada por pesquisadores eclesiásticos, especialmente os monges da Abadia de Solesmes (veja aqui o verbete da wikipedia, infelizmente o único mais completo está em francês).
Mas continuando com nosso objetivo de verificar aquilo que é realmente confirmável pela documentação, ou seja, estamos em busca de uma história da música para além de ideologias e mistificações – a pista mais antiga que se pode encontrar é um documento do século X. O Cantatorium depositado na biblioteca do Mosteiro suíço de Saint Gallen (talvez o principal centro de documentação eclesiástica do período carolíngeo) foi produzido cerca do ano 925, e é o documento mais antigo existente em notação neumática. Veja uma imagem extraída deste documento:
Ou seja, esse aí é o documento mais antigo com notação musical de música litúrgica da igreja romana (ou católica, como queiram) – é do século X. Foi produzido num período em que o Império Carolíngio já tinha se tornado a principal força dominante na Europa Ocidental. Do acordo entre os reis carolíngios e os papas romanos surgiu o primeiro sistema político estável a abarcar uma parte considerável da Europa. A tentativa de sistematizar o canto litúrgico é devida ao trabalho dos burocratas (ou intelectuais) desta aliança Religião/Estado que configurou muita coisa do mundo medieval e com transbordamentos para o mundo moderno.
Veja um mapa ilustrativo:
Como está claro no mapa, dá pra dizer que o Império Carolígio reuniu toda a Europa Ocidental sob um mesmo estado/igreja. Estão fora deste mapa apenas as ilhas britâncias, as regiões sob domínio muçulmano na Península Ibérica e as partes da Itália e do Leste Europeu que estavam sob o Império Bizantino.
Havia então uma tentativa de disciplinar os cânticos litúrgicos, afinal existiam várias tradições entoativas sobre as quais não resta documentação, senão a que se transmitiu por tradição oral: rito galicano, canto mozárabe, canto romano antigo, entre outros.
Para que a tradição dos cânticos litúrgicos pudesse ser acreditada sob a necessária aura de santidade, começaram a ser produzidos os livros de cânticos que disciplinariam a música nas igrejas do império. Eles começaram a receber a atribuição de “canto gregoriano”, e uma profusão de imagens começaram a ser produzidas ligando o cântico litúrgico à produção de São Gregório, ou Gregório Magno, reputado à época como o maior papa da história da igreja. Ele tinha sido Bispo de Roma no período 590-604, e é correto pensar nele como o primeiro papa, justamente por ter sido o primeiro a estabelecer a Igreja de Roma como centro político administrativo daquilo que passou a ser os Estados Papais. Gregório deixou muita produção escrita, embora não haja nenhum registro de que tenha escrito música – até porque não havia notação musical para isso em sua época, e nenhum documento musical sobreviveu. Se ele tivesse realmente produzido algo tão importante, a igreja não teria guardado esta documentação?
Entretanto, muitas imagens do século X apresentam figuras de São Gregório ditando os cantos litúrgicos a um escriba, enquanto o Espírito Santo está sobre seu ombro em forma de pomba, relevando a inspiração divina para tais cânticos. Veja uma imagem retirada do Antifonário Hartker depositado na biblioteca do Mosteiro de Saint Gallen, que foi produzido por volta do ano 997:
Então, as raízes do que a gente chama de Canto Gregoriano não tem profundidade maior do que o período de sistematização da liturgia empreendida pelo Império Carolíngio no século X, quando surge uma forma de notação minimamente estável e as primeiras compilações de antifonários ou livros de cânticos. A atribuição a Gregório é apenas uma forma de legitimar e sacralizar este processo.
Nossas pontes modernas com esta informação antiga também são muito precárias. Basta ver que a maioria dos livros de história da música disponíveis em português continuam reproduzindo esta conversa de que Gregório sistematizou os cantos litúrgicos durante seu papado.
Na verdade, o que a gente conhece hoje do canto litúrgico medieval é devido em grande parte ao trabalho realizado no final do século XIX por monges franceses. A abadia de Solesmes tornou-se um centro de pesquisa, sistematização e difusão do canto gregoriano. A notação utilizada e os muitos volumes impressos hoje disponíveis (bem como as gravações deles derivadas) foram produzidas a partir da década de 1890, como está explicado no interessante verbete francês da wikipedia. Mais explicações sobre a notação desenvolvida em Solesmes está neste trecho do verbete da wikipedia inglesa sobre neumas.
O principal produto dessa sistematização feita pelos monges de Solesmes no final do século XIX e início do século XX foi o Liber Usualis, um catatau de mais de 2000 páginas que serve de hinário oficial do canto católico.
A noção que a gente tem hoje de canto gregoriano tem mais a ver com este movimento de restauração da igreja surgido no século XIX como reação aos períodos revolucionários dos séculos XVII a XIX. Durante estes períodos, a Igreja foi alijada de sua posição tradicional de ligação umbilical com as monarquias e surgiram os modernos Estados nacionais laicos. A sistematização do canto gregoriano era, então, uma tentativa impossível de volta ao passado – um trabalho ideológico feito a partir da garimpagem em documentos espalhados em diversos mosteiros, coisa que foi produzida a partir daquele período carolíngio, mas que tinha sido abandonada nos períodos em que a música litúrgica começou a abraçar a polifonia (como veremos em aulas posteriores) a partir do século XIII.
Veja aqui um verbete sobre o Liber Usualis, que tem um link para uma edição em inglês. Desta edição saiu a imagem abaixo, de um canto litúrgico em notação gregoriana moderna.