Ao tentarmos estudar sobre os cânticos dos cristãos nos primeiros séculos, fica patente que é muito difícil pesquisar sobre assuntos de história mais remota, especialmente quando são temas sobre os quais resta pouca documentação. O caso fica ainda mais complicado se envolver uma tradição religiosa que se consolidou como hegemônica em séculos posteriores, e que foi responsável por produzir e depois preservar os únicos documentos existentes a seu respeito.
Por isso é muito complicado estabelecer postulados históricos confiáveis sobre o cristianismo dos primeiros 4 séculos. Provavelmente a documentação histórica mais antiga sejam algumas das cartas de Paulo que hoje compõem o Novo Testamento, datando da década de 50 do primeiro século. Os Evangelhos circularam oralmente antes de serem definidos como canônicos ou descartados pela ortodoxia (no caso dos hoje chamados apócrifos ou pseudo epígrafos). Como os cristãos foram um grupo perseguido tanto pela tradição judaica quanto pela burocracia romana, a produção e a preservação de documentos era muito complicada e difícil.
Parte do material que pode servir de pista aos pesquisadores é a iconografia, que tem num dos melhores exemplos a imagem que ilustra o post. Ela está preservada numa catacumba onde foram sepultados vários mártires que foram vítimas de perseguição no início do Século IV. A imagem retrata o Cristo na forma de Orfeu, o que nos remete a duas ligações muito importantes: primeiro aos processos de helenização que transformaram o cristianismo de uma seita sectária em um grupo intelectualizado e aceitável para o mundo urbano antigo, e em segundo lugar à importância que a música assumiu nas comunidades cristãs dos primeiros séculos.
A associação da figura do Cristo Salvador com o mito grego de Orfeu diz muito sobre o status da música nas primeiras comunidades cristãs. Afinal, Orfeu era filho de uma musa, e usou suas habilidades com a lira que ganhara de Apolo para salvar os argonautas em vários perigos da viagem. Depois tinha usado sua lira novamente na descida ao inferno para a busca de sua amada Eurídice, quando tocou para a barca de Caronte não afundar carregando um vivo, para acalmar o cão Cérbero, e até mesmo para aliviar o sofrimento dos mortos.
Se a lira de Orfeu tinha tantos poderes miraculosos, nada melhor do que associá-la ao Redentor dos cristãos. Essa importância da música na tradição das comunidades dos primeiros séculos também pode ser atestada pelas fontes escritas. Por exemplo, em Adoração na igreja primitiva, Ralph Martin demonstra que vários trechos do Novo Testamento são cânticos litúrgicos que passaram ao cânone (assim como também várias orações coletivas). Este autor parte dos Evangelhos e demais livros do cânone cristão para mapear as pistas sobre os cânticos litúrgicos das comunidades do primeiro século. Mas só nos chegam os textos poéticos, pois nada sobrevive em notação, nem que sejam fragmentos como os da música grega antiga.
Na verdade, é conhecido um único fragmento de hino cristão anotado à maneira como faziam os gregos. Ele foi encontrado como parte da coleção dos Papiros de Oxyrrinco, e foi publicada uma transcrição deste fragmento, que foi incluída nos apêndices do livro A música grega, de Théodore Reinach. Veja a imagem:
Se a documentação direta sobre música é rara, resta a documentação indireta, e aí a coisa começa a ficar mais interessante. Tem dois livros que eu gostaria de estudar sobre o tema mas estão um pouco mais difíceis de achar. Um livro antigo em francês do Oscar Cullman sobre a fé e o culto da igreja primitiva – este autor tem várias coisas em português nos catálogos, mas não este livro, infelizmente. Outro livro antigo em inglês do Eric Werner (esse pelo menos tem um pdf disponível). E ambos os livros são usados e citados pelo Xabier Basurko no livro O canto cristão na tradição primitiva, que está mais fácil pra gente aqui no Brasil.
O Basurko faz um ótimo panorama do uso da música nos séculos II a V através da literatura patrística. E assim ele consegue umas pistas ótimas sobre os usos da música, suas funções e a maneira como tudo foi regulado pelos caras que criaram a ortodoxia que seria dominante pelos próximos milênios.
De começo a coisa já faz ligação com a imagem do Cristo/Orfeu das catacumbas. Na página 34 o Basurko aponta o seguinte:
O salmo cantado torna-se assim uma medicina divina para a cura do espírito humano, ferido pelo pecado. Os médicos experientes – anota Basílio – quando têm de curar um paciente com um remédio amargo, têm o costume de ungir uma ou outra vez com mel a borda do cálice. Desta forma, o enfermo recebe seu remédio sem sentir o gosto desagradável. Deus fez a mesma coisa no canto do salmo, juntando o mel da melodia ao remédio de suas palavras divinas.
A imagem do remédio pode facilmente responder aos métodos terapêuticos do tempo dos Pais. Ela, não obstante, aparece em Platão em um contexto muito afim ao nosso, e essa passagem já é conhecida e citada por Eusébio de Cesaréia. Assim, pois, parece mais uma transposição de ideias recolhidas da filosofia helênica a um plano cristão.
O trecho de Basílio estava em sua Homilia ao Salmo 1. A referência a Platão remete ao Diálogo das Leis, livro II, vers. 660 (ver aqui uma edição bilíngue grego/francês). O trecho mencionado de Eusébio de Cesaréia está nas Preparatio Evangelica, XII, 20.
Por aí a gente tem duas coisas importantes sobre a função da música no entender das lideranças eclesiásticas dos primeiros séculos. A primeira é que a música assumiu papel fundamental no ensino da doutrina aos jovens, de modo a amenizar a dureza da decoreba. A segunda é que esta concepção educativa da música já estava em Platão e que muitas coisas que os Pais antigos escreveram era mera cópia da filosofia da Grécia Clássica. Não é pra menos, os caras escreviam em grego e viviam num mundo helenizado (o grego é mesmo a língua do Novo Testamento e vários conceitos cristãos vêm da tradição grega – talvez o mais notável seja da ideia do verbo/logos que está no início do Evangelho de João).
O Basurko também vai seguindo as pistas e identificando dois tipos diferentes de canto litúrgico. O primeiro seria uma maneira entoada de ler os textos bíblicos, que foi apenas uma das muitas tradições cúlticas que o cristianismo trouxe do judaísmo. Veja que interessante um exemplo de uma dessas leituras feitas por um rabino atual:
Haveria ainda um outro modo musical de fazer a recitação quando fosse referente ao livro dos Salmos. E, por fim, um outro tipo de cântico que seria usado para os demais momentos do culto, intercalados entre as leituras.
A forma entoativa de praticar as leituras litúrgicas é mais compreensível se pensarmos que o mundo daquela época tinha poucas possibilidades de produzir, copiar e manter textos escritos. As formas orais de criação e transmissão eram fundamentais, e por isso as leituras eram tão fundamentais. Pode parecer estranho para o nosso mundo em que todos tem Bíblia de papel, e até nos smartfones.
Os outros tipos de música assumiriam papel fundamental nos cultos e como elemento de conforto espiritual e como amálgama do corpo dos fiéis.
Sobre a questão do conforto espiritual e afastamento dos maus espíritos, vejamos dois trechos do Basurko:
Uma interessante interpretação espiritual encontramos em Nicetas de Remesiana. Segundo ele, não foi o som da cítara de Davi que expulsou o espírito maligno que agia em Saul, mas o poder de Cristo. Na realidade, a cítara de Davi com suas cordas estendidas sobre a madeira era o símbolo de Cristo crucificado e era também a paixxão do Salvador que Davi cantava naquele momento. (p.64)
Assim como os porcos se juntam nos lugares lamacentos – as abelhas, ao contrário, em lugares onde se encontram aromas e perfumes – assim também os demônios se congregam onde se estão cantando canções de meretrizes, enquanto que lá onde se cantam os cantos espirituais voa num instante a graça do espírito, que santifica a boca e a alma dos cantores. (João Crisóstomo, Exposição sobre o Salmo 41). (p. 66)
Mas o que mais me chama a atenção é a função coletivizadora e uniformizadora dos cânticos cultuais. Se todos os estudiosos concordam que o cristianismo primitivo tinha como marca a radical igualdade entre os irmãos, fica mais forte ler a seguinte citação de João Crisóstomo, um pregador que, depois de ser monge, viveu entre a riqueza imperial de Constantinopla na época em que o cristianismo ia se tornando religião do império. Suas palavras buscam retomar a radicalidade da fé que coloca todos como iguais perante Deus, e isso se faz especialmente através dos cânticos:
Desde que o salmo cai no meio de nós, ele reúne as vozes diversas e forma de todas elas um cântico harmonioso: jovens e velhos, ricos e pobres, mulheres e homens, escravos e livres, fomos arrastados em uma só melodia. Se um músico, fazendo soar com arte as diversas cordas de sua cítara, compõe com elas um só canto, apesar de serem múltiplos os seus sons, é preciso ainda espantar-se de que nossos salmos e nossos cantos tenham o mesmo poder?… O profeta fala, e todos nós respondemos, todos mesclamos nossa voz à sua. Aqui não há nem escravo nem livre, nem rico nem pobre, nem príncipe nem súdito; longe de nós estas desigualdades sociais, formamos todos um só coro, todos fazemos igualmente parte dos santos cânticos, e a terra imita o céu. Tal é a nobreza da Igreja. E não se dirá que o senhor canta com segurança e que o servo tem a boca fechada; que o rico faz uso da língua e que, o pobre não; que, por fim, o homem tem direito de cantar e que a mulher deve permanecer em completo silêncio. Investidos de uma mesma honra, oferecemos a todos um comum sacrifício, uma comum oblação; um não é mais do que o outro, não existe nenhuma distinção, nenhuma diferença; todos nós temos a mesma honra, repito-o uma só voz se eleva de distintas línguas ao Criador do universo. (De studio presentium, homilia 5, 2) (p. 101)
Comentários
5 respostas para “Os cânticos dos cristãos nos primeiros séculos”
Ótimo texto André. Como sempre, é uma delícia ler os teus posts.
Esse texto me fez lembrar de uma conversa recente que tive com um amigo do Cairo. Segundo ele, no Egito existem alguns prédios para oratórios cristãos (não sei se são basílicas ou não) que são anteriores aos mais antigos dentro do Império Romano. Não sei exatamente quando as primeiras basílicas foram construídas na Europa (início do século IV?), mas se ele estiver certo talvez hajam mais documentos a respeito de hinos e entoação de salmos do começo do cristianismo, e estudos feitos no Egito que talvez tenham utilidade para o assunto.
É só uma curiosidade, nada comprovado por nenhum texto, mas fiquei curioso e de repente é uma porta pra você se aprofundar mais.
Grande abraço!
Obrigado pelo comentário Humberto.
A gente sabe pouca coisa sobre as igrejas dos lugares em que elas se estabeleceram primeiro – Palestina, Ásia Menor (atual Turquia), península grega, Egito, norte da África. Correspondem a religiões muito diferentes da que foi institucionalizada pela igreja romana na Europa. Há a dificuldade com a documentação, especialmente se lembrarmos que são países politicamente instáveis até hoje, com pouca institucionalização acadêmica e idiomas aos quais não temos acesso.
A pouca documentação que veio para o Ocidente, inclusive os materiais que serviram para este post, são em geral coisas que foram pilhadas por britânicos e franceses em suas conquistas imperiais de final do século XIX e início do século XX.
A gente sabe pouco de história, para além de alguns interesses ideológicos mais específicos…
E quem sabe documentos perdidos na biblioteca do Vaticano.
Esses não estão perdidos. Estão bem guardados. E os mais comprometedores destruídos. Mais ou menos como os documentos do Exército Brasileiro.
Excelentes o texto e as indicações de leitura (cheguei aqui pelo História Cultural). Vou atrás do livro do Basurko. Mas há muita informação sobre a música cristã no período da Patrística no livro de Calvin Stapert, A new song for an old world: music thoughts in the early church. (minha referência principal para falar da música dos cristãos primitivos).