Continuo seguindo a pista do que é provalvemente a mais atual e completa história da música, por enquanto publicada apenas em inglês: The Oxford History of Western Music, de Richard Taruskin, livro do qual já me utilizei para escrever outro post:
Quando começa a História da Música?
(Isso está no primeiro volume, que existe em Kindle)
Taruskin, ainda no primeiro capítulo (“E a cortina se levanta”) está agora comentando sobre o surgimento dos neumas e da notação musical. Ele demonstra que o surgimento da notação por neumas ocorreu em algum momento ao longo do século IX, período do qual datam as notícias mais antigas acerca de manuscritos anotados por este método.
Isso tem relação com o processo de sistematização do “Canto Gregoriano”, ocorrido durante o Império Franco. Uma importação da liturgia romana, processo que parece ter criado a necessidade de um sistema de notação.
Taruskin indica que as pesquisas atuais sugerem um parentesco dos neumas com as formas de notação de inflexões de leitura, como o ta’amin judeu – uma tradição de leitura pública da Torá que inclui inflexões melódicas. (Tem algumas imagens e explicações aqui e aqui.)
Do mesmo modo, uma notação derivada das que serviam para ajudar a lembrar inflexões de leitura ritual acaba se desenvolvendo para anotar os cantos da missa, ou o que passou a se chamar “Canto Gregoriano” (o termo é impreciso, como já discutido no outro post citado acima). São sinais gráficos que apenas ajudam a lembrar as inflexões melódicas de antífonas e responsórios. Apesar de ter havido outros manuscritos, alguns de data incerta e outros que hoje estão destruídos, parece que o conjunto mais antigo de documentos em notação neumática é o Cantatorium que está preservado no Mosteiro de Saint Gallen, hoje situado na Suíça alemã, mas que era então o principal centro intelectual monástico do Império Franco, e cuja biblioteca é hoje uma das principais depositárias de documentos antigos.
O tal Cantatorium é hoje preservado e considerado o documento mais antigo existente com notação musical. Foi compilado no ano 925, e contém os cantos do próprio da Missa. O pdf do documento completo está aqui.
Entretanto, além dessas preciosas informações documentais que peguei do Taruskin, achei muito interessante a reflexão que ele faz sobre a relação entre notação musical e música. Traduzo alguns trechos:
O interessante, como já observamos, é que a criação dessa escrita, que nos parece um evento tão importante, tenha ocasionado tão pouca notícia em seu tempo.
Não há uma única referência literária para documentar a invenção dos chamados neumas que acompanhavam o movimento melódico de subida e descida do tom e sua aplicação dentro das sílabas de texto, nos mais antigos manuscritos com notação musical.
(…)
Depois de mil anos de notação em pauta, 500 anos de impressão, e uma geração de fotocópia barata, “músicos eruditos” ocidentais e estudantes de música (especialmente aqueles com formação acadêmica) se tornaram tão dependentes de textos que eles (ou melhor, nós) dificilmente podem imaginar mentes que realmente usavam suas memórias, não apenas para armazenar melodias aos milhares, mas para criá-los também. Agora temos tudo para cairmos presa em algum grau do perigo sobre o qual Platão já alertava seus contemporâneos cerca de dois milênios e meio atrás: “Se os homens aprenderem a escrever, vão implantar o esquecimento em suas almas” (Fedro, 275a). Assim, não é de admirar que os músicos “clássicos” habitualmente – e muito equivocadamente – tendem a igualar a composição musical em um contexto oral com improvisação.
Improvisação – fazer coisas à medida que se avança em “tempo real” – é uma arte de performance. Implica um produto efêmero, impermanente. Mas enquanto algumas formas de música transmitida oralmente (jazz, por exemplo) fazem mobilizar a faculdade espontânea criativa em tempo real, sempre houve músicos (bandas de rock atuais, por exemplo) que trabalham composições sem notação mas meticulosamente, em detalhe, e antecipadamente. Eles fixam seu trabalho na memória, no próprio ato de criar, de modo que seja permanente. Cada espetéculo é esperado que se assemelhe a todos outros (o que, naturalmente, não impede retoques ou melhorias ao longo do tempo, ou mesmo espontaneamente). Seu trabalho, enquanto “oral”, não é improvisação. Os atos criativos e re-criativos foram diferenciados.
(…)
Há uma abundância de melodias familiares que ainda são transmitidas dentro de nossa cultura quase que exclusivamente por meios orais: hinos nacionais, canções patrióticas e de dias santos (América, Jingle Bells), canções de uso ocasional (Take Me Out to the Ballgame, Parabéns a você), canções populares (Home on the Range, Swanee River), bem como um vasto repertório de canções infantis – ou canções que se tornaram canções infantis – em um processo de transmissão em que os adultos raramente tomam parte (It’s raining, it’s pouring, Oh they don’t wear pants in the sunny south of France)
Quase todas essas músicas, muitas delas compostas por músicos letrados (como Stephen Foster, autor de Swanee River e muitas outras canções que agora vivem principalmente na tradição oral), foram publicadas em forma escrita, inclusive com registro de direitos autorais. No entanto, enquanto quase todos os leitores deste livro serão capazes de cantá-las de cor, muito poucos terão visto a sua partitura impressa. Elas são geralmente encontrados in situ, nos lugares e nas ocasiões apropriadas de seu uso. Algumas delas, especialmente canções patrióticas e religiosas, são costumeiramente ensinadas em escolas ou igrejas ou sinagogas; muitas outras, talvez a maioria, simplesmente “pegaram” a forma como uma língua é usada por seus falantes nativos.
A música ocidental é mais suscetível de ser pensada como pertencendo exclusivamente à tradição letrada – sonatas, sinfonias, “música clássica” em geral – mas na verdade sua transmissão também depende de um grande esforço de mediação oral. Os professores demonstram aos seus alunos por exemplo oral muitos aspectos cruciais da execução musical – nuances de dinâmica, fraseado, articulação, e até a execução rítmica – que não são transmitidas, ou são inadequadamente transmitidas, até mesmo pela notação mais detalhada. E os alunos aprendem a imitar diretamente o que eles tentam mostrar (ou melhor, acabam imitando o próprio professor, o que necessita um esforço para ser superado). Regentes comunicam suas “interpretações” para orquestras e coros cantando, gritando, gemendo, gesticulando. Antigamente, o compositor pode ter cantado, gritado, grunhido, e gesticulado como os regentes atuais. Músicos não só de jazz, mas também os clássicos, copiam as performances de artistas famosos a partir de gravações, como parte de seu processo de aprendizagem (ou como parte de um processo, não admitido abertamente, de apropriação). Tudo isso é tão “oral” como meio de transmissão quanto qualquer coisa que possa ter acontecido em Roma, para gerar o canto gregoriano antes de sua migração para o norte.
Depois disso o livro do Taruskin começa a tentar explicar diferentes formas de entonação do canto gregoriano a partir do Salmo 92 (91 na Vulgata), e aí ele cai nos livros de cânticos editados pelos monges de Solesmes no final do século XIX. Também tenta explicar como funciona a notação neumática, mas pra isso talvez valha mais a pena olhar o verbete da Wikipedia em inglês.