Estou às voltas com uma dificuldade considerável em construir uma visão confiável de História da Música, uma disciplina que sofre dos problemas de ter se originado como “disciplina auxiliar” da crítica musical e do mercado de concertos. Como disciplina acessória, destinada a promover um panteão de heróis e gênios a ser admirado pelo público comprador de bilhetes de concerto, partituras para tocar em casa e, já no século XX, fonogramas em todas as suas formas (do discão de 78 rpm ao arquivo virtual para ipod), a História da Música tendeu a ter pouco compromisso com o que se pode chamar de “verdade histórica”.
Foi alguma coisa mais ou menos como aquela história que os milicos mandaram entrochar na nossa goela no meu tempo de colégio: cheia de heróis da pátria, em livros didáticos escritos por advogados, que os historiadores eram tudo uns esquerdistas porra-loucas que mereciam estar presos.
A história da música que eu aprendi na minha vida como estudante de música foi como essa. Vinha dos manualzões traduzidos, e servia para dizer quem foram os compositores mais importantes de cada período, sua biografia (ou seria hagiografia?) e comentários de suas obras.
Nesse meio tempo, fui estudando em departamentos de História e construindo uma visão crítica da música no modernismo brasileiro – algo meio no campo da História Social da Cultura, mesclando música e política, compositores como intelectuais, o trabalho do músico, instâncias de formação e reconhecimento, etc.
Agora volto a assumir uma cadeira de História da Música I, que pretende tratar de uma história da música que vá dos tempos antigos (comecei com a música grega antiga) até o surgimento da ópera barroca no século XVII.
E aí me deparo com a incrível dificuldade de achar textos confiáveis em português, e saio garimpando na vasta bibliografia em inglês para tentar construir, às pressas, uma abordagem minimamente acadêmica do negócio todo. A princípio me sinto mal, pois tenho dificuldade em formular os temas de maneira articulada, e sinto que falta no Brasil a necessária tradição acadêmica na abordagem destes assuntos.
Na aula que ministrei sobre “canto gregoriano”, uma tentativa de compreender as origens do canto litúrgico cristão nos primeiros séculos me levou a mais dúvidas do que conhecimentos. Pesquisando nos verbetes em inglês da Wikipedia e no Dicionário Grove (especialmente os verbetes Old roman chant, Gregorian chant e Gregory the Great) decubro que o tal “canto gregoriano” não existe desde os primórdios do cristianismo e, sequer foi obra de Gregório I, papa entre 590 e 604. A uniformização da liturgia (uma escola de formação de monges cantores, e livros de cantos anotados) ocorreu ao longo dos séculos VII e VIII na região de Roma, e atravessou os Alpes no tempo dos reis carolíngeos, quando surgiu lenda de Gregório como fundador de uma liturgia cristã universal. Isso teria ocorrido no reino franco mais por influência intelectual de Alcuíno, vindo das Ilhas Britânicas, um lugar que tornou-se cristão por obra de missionários enviados pelo lendário papa.
Agora começo a estudar a The Oxford History of Western Music, calhamaço escrito por Richard Taruskin, publicado em 2010 (tem versão kindle) e percebo que o negócio é por aí mesmo.
Para Taruskin, a História da Música começa com o surgimento de música anotada. O primeiro capítulo de sua coleção de 5 volumes é chamado “A cortina se levanta”. Não, ele não acha que a música começa com a notação. Deixa bem claro que existia muita música e coisas que circulavam há muito tempo. Aliás, a primeira música anotada era, por mera contingência, música sacra, litúrgica, vocal e monódica. Taruskin alerta para o perigo de considerar que a música tenha começado por aí – tenha sido primeiro vocal e monódica, para depois se tornar polifônica e instrumental. Interessante pensar que essa teleologia absurda é difundida em 10 entre 10 manuais daqueles em que eu estudei história da música.
O negócio é que se fazia diversos tipos de música, sendo a vocal-litúrgica-monódica apenas um dos muitos tipos existentes. E o fato de ter se tornado a primeira música anotada tem motivação política, praticamente nenhuma relação com qualquer questão propriamente musical, no dizer de Taruskin.
Por isso o livro começa tratando da relação entre o papa Estêvão II e o rei franco Pepino o Breve. Uma aliança militar que pudesse repelir as invasões lombardas, e uma coroação papal capaz de dar o lustro divino à casa dinástica que viria dominar a política européia pelos séculos VIII e IX terminaram por fazer a liturgia romana substituir outros modelos (principalmente o “rito galicano”) no que hoje se conhece por Europa Ocidental.
Taruskin põe os pingos nos ii de maneira mais direta. Tem um capítulo intitulado “A lenda de São Gregório”, onde logo no início ele explicita:
A partir dessas disputas podemos adivinhar o motivo de uma lenda venerável que se tornou ligada ao canto romano pela época de seu advento à história escrita. Foi então amplamente afirmado que todo o legado musical da igreja romana foi a criação inspirada de um único homem, o santo papa Gregório I, que reinou de 590 até sua morte em 604. A queixa de João o Diácono contra a barbárie dos francos na verdade vem de sua biografia do presumido autor do canto. “São Gregório compilou um livro de antífonas” João escreve, usando o termo contemporâneo para um tipo de canto litúrgico. “Ele fundou uma schola”, o cronista continua, usando o termo contemporâneo para um coro, “que até hoje pratica o canto na Igreja de Roma de acordo com suas instruções; ele também erigiu duas habitações para ele, em São Pedro e no Palácio de Latrão, onde é venerado o divã onde ele deu aulas de canto, o chicote com que ele ameaçou os meninos, e o autêntico antifonário”, o último sendo o grande livro contendo a música para todo o calendário litúrgico.
Este livro não pode ter existido nos dias de São Gregório, porque não havia maneira de colocar música nele. Como o contemporâneo de Gregório, São Isidoro de Sevilha (ca. 560-636) anotou em sua grande enciclopédia chamada Etymologiae (ou “Origens”), “A não ser que os sons sejam mantidos na memória pelo homem eles perecem, por que não podem ser escritos”.
Muito interessante que Taruskin nota que a lenda de São Gregório inspirado divinamente difundiu-se tanto por textos como o de João o Diácono como principalmente por uma tradição iconográfica que representa o santo papa ditando suas homilias para um escriba, assistido pelo Espírito Santo em forma de pomba (veja um pouco dessa iconografia no verbete da wikipedia anglófona). Segundo o autor, a apresentação de Gregório como um compositor de cantos litúrgicos inspirados divinamente servia como argumento político no processo mantido pelos reis carolíngeos de substituir as liturgias locais pela tradição do canto litúrgico romano. Se as melodias compostas por São Gregório eram de inspiração divina, como alguém poderia se opor ao seu uso?
Depois de estabelecer uma origem histórica mais específica para a lenda de Gregório compositor divinamente inspirado, Taruskin vai invesigar de onde vem a tradição do canto gregoriano. Está bem demonstrado pelo autor que o canto gregoriano não foi obra de um homem só, mas uma construção coletiva e cumulativa que só estava padronizada no final do século VIII, poucas décadas antes de aliança entre papa e rei franco marcar o surgimento do Sacro Império Romano com a coroação de Carlos Magno por Leão III no ano 800.
Taruskin investiga a origem desse canto gregoriano, basicamente o canto de salmos litúrgicos, e aponta não para uma tradição que tivesse surgido entre os primeiros cristãos por influência dos ritos sinagogais, mas para uma tradição que entrou na Europa pela Espanha, no início do século V, vinda dos cantos noturnos dos monges. O que dá o título do capítulo “Salmodia monástica”.
No momento em que o cristianismo se tornou a religião do Império, entre o final do século IV e ao longo do século V, houve um aumento do número de cristãos em busca de um retiro para formas idealizadas e mais autênticas de fé, longe do poder e da riqueza dos principais bispos e teólogos. Assim foi surgindo uma forte tradição monástica, de onde Taruskin considera que surgiram as práticas que desembocariam no que chamamos de canto gregoriano. Em suas palavras:
Foi em tal contexto comunitário que as práticas salmódicas surgiram, o que acabaria por produzir o canto gregoriano. Um aspecto importante do regime monástico era o ficar acordado à noite, uma disciplina conhecida como vigília. Para ajudá-los a manter-se acordados e para acompanhar suas meditações, monges liam e recitavam constantemente, guiados pela Bíblia, e particularmente pelos Salmos. A prática padrão, afinal transformada em regra, era recitar os salmos em um ciclo interminável, um pouco à maneira de um mantra, para distrair a mente de apetites físicos, para preenchê-la com conceitos espiritualmente edificantes, de modo a libertar os níveis mais elevados de consciência (o intellectus, como era chamado) para a iluminação mística.
Depois de explicar isso, Taruskin demonstra que essas práticas salmódicas foram sendo adotadas nas missas em contexto não monástico (sobre isso poderíamos trazer a reflexão sobre o altíssimo status moral assumido pelos monges por esta época, em comparação com o “clero secular”). E aí ele lança uma bomba sobre concepções tantas vezes repetidas em manuais: a monodia não foi a forma primitiva de canto litúrgico, nem era uma necessidade. Foi uma escolha, e representava uma rejeição de práticas antigas tanto judaicas como pagãs, que eram presumivelmente mais complexas e, eventualmente, polifônicas (sobre isso o autor despreza o fato de que a prática sinagogal judaica diferia muito daquela do templo, que ele presume conhecer a partir do Salmo 150).
Eu colocaria as coisas de outro modo, afinal Taruskin demonstra uma boa compreensão de como o “canto gregoriano” se tornou hegemônico no reinado carolíngeo, mas como está partindo de fontes musicais que remontam ao século VIII, sua visão sobre os processos mais antigos pode ser um tanto turva. Entretanto, se podemos sustentar que haviam práticas monódicas tanto no judaísmo quanto no cristianismo oriental, é certo que a monodia na Igreja Romana surge como uma construção posterior, uma escolha entre várias possibilidades, embora a tradição de igreja perseguida e escondida dos primeiros séculos (os cantos noturnos vinham daí eu acho, e não dos mosteiros) deva ter continuado a existir mesmo depois que Constantino transformou definitivamente o cristianismo numa religião de ricos e poderosos. Se tem uma coisa que devemos ter e mente sobre o cristianismo, é que nunca foi monolítico, sempre foi muito plural, e as formas de controle oficial nunca foram tão efetivas quanto querem parecer nos documentos que nos chegaram.
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