A renúncia de Ratzinger: prenúncio de abertura?

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Faz alguns dias que estou em leituras e reflexões pessoais tentando entender os motivos e os significados da chocante e inédita renúncia do Papa Bento XVI.

Meu primeiro impulso foi discutir a absurda e tão repetida frase de que “o último papa a renunciar o fez há 600 anos”. Escrevi sobre isso no blog História Cultural, comparando a renúncia atual com aquela realizada por Gregório XII em 1416. Um papa chegar diante dos cardeais, no pleno exercício de uma função eclesiástica reconhecida como legítima e dizer “não posso mais” é coisa que nunca aconteceu na história. E estamos falando de uma história milenar, sendo a Igreja Romana e o Papado as mais antigas, sólidas e enraizadas instituições existentes na face da Terra.

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Depois que escrevi aquele texto, fui acompanhando uma série de outras reflexões sobre a questão, que ajudaram a compor um panorama capaz de fazer minhas próprias considerações. Por exemplo, em ótima matéria para a Carta Capital nº 736 (p. 48-53) Antonio Luiz M. C. Costa se dá ao trabalho de conferir todas as renúncias anteriores. Além do Gregório XII tratado em meu texto citado acima, apenas Bento IX (1045), Gregório VI (1046) e Celstino V (1294) – todos em casos de aguda crise do papado, com ingerência política e militar externa à Igreja.

Mas talvez a renúncia não seja tão espontânea, a acreditar na matéria de Paolo Manzo no mesmo nº 736 (p. 56-58), que sugere que Ratzinger tenha renunciado para escapar a uma ameaça de assassinato. Movida pelos interesses financeiros escusos do Banco do Vaticano, os mesmos interesses que levaram ao diretor recém demitido Gotti Tedeschi temer pela vida, um precedente que já afetou Roberto Calvi (encontrado enforcado embaixo de uma ponte em Londres no início dos anos 1980 – fato lembrado na entrevista de Marco Damilano nas páginas 54-55 da mesma revista). Também há suspeitas sobre a morte misteriosa de João Paulo I, 33 dias após sua eleição em 1978. Lembremos que ele disse, a respeito do mesmo Banco do Vaticano (cujo nome real é Instituto para as Obras Religiosas – IOR) ao assumir:

O IOR deve ser totalmente reformado. A Igreja não deve ter poder ou possuir riqueza. O mundo precisa saber a finalidade do IOR, como o dinheiro é arrecadado e como é gasto. Temos de garantir a transparência.

Pode ser que Bento XVI tema pela própria vida ao insistir em querer aplicar a mesma transparência a um banco que foi fundado com grossa soma de dinheiro doada por Mussolini no âmbito do Pacto de Latrão, feito entre a Igreja e o Governo Fascista em 1929.

Essa é uma das especulações possíveis, e as reportagens citadas apresentam argumentos e informações muito consistentes.

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Entretanto, há outras causas que foram aventadas. Carlos Orsi escreveu em seu blog sugerindo que o principal fator pode ter sido o peso dos casos de pedofilia, que já somam 2 bilhões de dólares em indenizações devidas pela Igreja nos EUA.

a reflexão de Hugo Albuquerque vai mais para uma linha histórica, traçando os dilemas de uma Igreja que oscilou terrivelmente entre a modernização e o conservadorismo, uma linha que também é chave no texto de Antonio Luiz Costa citado acima. O título dado pelo articulista de Carta Capital a seu texto é O papa dos lobos, e o texto sugere que ele foi vítima da extrema direita católica, que alimentou desde os tempos em que assumiu o antigo Tirbunal do Santo Ofício ou Inquisição, ainda no papado de João Paulo II (a hoje chamada Congregação para a Doutrina da fé).

As especulações sobre corrupção moral, sexual, política e financeira são uma linha que me abstenho de comentar aqui. Não que estes motivos sejam desprezíveis, ou que seja injusto comentar sobre isso. Tudo isso faz parte da condição humana, e igrejas de todos os tipos são lugares de constante disputa política, onde se lida com poder e dinheiro, e onde se pretende controlar a vida sexual dos outros (ao mesmo tempo em que procura-se manter a dos líderes o mais secreta possível). Entretanto, escândalos financeiros, sexuais ou políticos nunca abalaram o poder da Igreja, que é uma estrutura que sempre teve força para resistir a esse tipo de ameaça ao seu sólido edifício.

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Um dos principais motivos pode ser encontrado numa controvérsia teológica do século V, que opôs Santo Agostinho aos Donatistas. Naquela ocasião, o que estava em debate era a autoridade espiritual do clero, e a possível relação disso com a moral do clérigo.

Os donatistas viviam em um contexto muito específico no Norte da África, por aqueles tempos uma região amplamente cristianizada, mas dominada por um clero de origem européia, e pelo latim como língua litúrgica e teológica (resquícios do Império Romano, cuja aliança com a Igreja nos tempos de Constantino forjou o cimento da religião católica).

Muitos interpretam a controvérsia donatista como uma questão de fundo social, e os donatistas tiveram mesmo seu braço armado, os bandoleiros conhecidos como circunceliões. Naqueles tempos, como em todos os outros, controvérsias teológicas eram sintomas de convulsão social e agitação revolucionária.

A principal questão teológica para os donatistas era o não reconhecimento da autoridade de um bispo que tivesse sido traidor nos tempos de perseguição, abjurando da fé ou entregando preciosas porções de texto sagrado. É preciso lembrar que muitos cristãos morreram sob tortura para não entregar seus preciosos manuscritos nos tempos então recentes em que a fé era perseguida.

Por outro lado, Agostinho é o marco central de uma virada que coloca a Igreja Romana de fé perseguida em fé perseguidora. Um processo que tinha iniciado violentamente com a conversão de Constantino em 313, e tinha seguido de forma tortuosa e cheia de conflitos político teológicos ao longo de todo o século IV.

Agostinho saiu vitorioso e enquadou os donatistas (entre outros grupos que os “pais da igreja” empurraram para a categoria de hereges a serem derrotados teologicamente e eliminados fisicamente). Sua argumentação era de que a autoridade divina está no cargo, e não na adequação moral de quem o exerce. Ou seja, para Agostinho, o que importava não era se o homem que ocupava o cargo de bispo tinha sido recentemente um traidor. O que importava era que o cargo de bispo se justificava diretamente pela teoria da sucessão apostólica, que ligava cada cargo eclesiástico diretamente à divindade de Cristo (outro assunto controverso que continuou sendo resolvido a pauladas em concílios até pelo menos o século VIII).

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A tese de Agostinho se manteve intacta durante todo o período que podemos chamar historicamente de Cristandade Ocidental, e se mantém até o dia em que Bento XVI anuncia sua renúncia.

É interessante lembrar que justamente a crise moral que surgiu da ligação entre o bispado monárquico estabelecido paulatinamente ao longo dos 3 primeiros séculos da era cristã e o império de Constantino tenha levado ao surgimento do monasticismo. Se os bispos, que deveriam ser autoridade moral e espiritual, se tornavam homens de poder, de dinheiro e alicerces da opressão política, a admiração popular desviava seu olhar para os homens que decidiam não ter bens, viver vida reclusa, orar e cantar cotidianamente, trabalhar de forma comunitária, atender aos necessitados e ainda ajudar a comunidade próxima.

O papel dos monges, vistos como homens santos pela comunidade, ainda não é corretamente dimensionado em sua importância para a história européia. Mas vale lembrar o incrível impacto econômico de seu modelo coletivista de produção num mundo ainda castigado pela perda de produtividade inerente ao escravismo greco-romano, bem como o papel de preservação do saber escrito assumido pelos scriptoria dos mosteiros durante todo o medievo.

A história do cristianismo entre os séculos V e XVI quase que pode ser resumida entre grandes ondas de corrupção nas ordens monásticas e o surgimento de novas ordens cuja pregação invariavelmente era por uma reforma moral da igreja, um retorno à simplicidade apostólica, uma devoção sincera. Caracaterísticas que sempre contrastaram com a nobreza territorial dos bispos e o poder político-financeiro do Papado, que foi entre 590 (ascenção de Gregório I como governante secular de fato) e 1870 (expulsão do papado no processo de criação do Estado-nação italiano) um misto de liderança espiritual e monarquia terrena.

Os reformadores do século XVI (principalmente Lutero, Calvino e Zwínglio) deslocaram a questão de Reforma: não mais uma mera reforma moral dos ocupantes de cargos ou renovação de combalidas ordens monásticas. Mas uma reforma teológica que refletisse os novos tempos de vida citadina e capitalismo mercantil (difícil entender as Reformas Protestantes sem avaliar a interação das polêmicas doutrinárias com o nascente mercado editorial moderno), bem como uma mudança substancial na forma de ação da Igreja que se traduziu em profundas alterações no governo eclesiástico, na relação entre Igreja e Estado, bem como pelo fim do monasticismo e do celibato compulsório.

As partes da Europa que escaparam ao domínio territorial-financeiro do papado ao longo do processo de Reformas Religiosas do Séc. XVI não mudaram muito as coisas. Ou melhor, o equilíbrio se manteve porque ao mesmo tempo em que perdia a Europa para os protestantes, o papado ganhava os quatro cantos do mundo pela ação terceirizada das monarquias ibéricas que conquistaram o mundo sob o regime do padroado.

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Ou seja, até o final do século XIX, a autoridade espiritual do papado nunca esteve tão ameaçada, senão nas corriqueiras picuinhas políticas entre o monarca de Roma (que também era o da Igreja) e os interesses de outros monarcas europeus que apenas em ocasiões fugazes lograram se contrapor ao Trono de São Pedro.

Mas ao longo do século XIX a coisa mudou um pouco de figura. As revoluções do século XVI e XVII, que costumamos considerar equivocadamente como assuntos apenas religiosos ou teológicos tinham mudado muito o mundo europeu, mas nada seria comparável ao que Eric Hobsbawm chamou de “dupla revolução”, os processos siameses da Revolução Industrial sediada na Inglaterra e a mudança política desencadeada pela Revolução Francesa.

Sendo um órgão típico do Antigo Regime, ao final do século XIX estava evidente que a Igreja Romana não podia mais se sustentar da mesma maneira que tinha feito até então. A unificação italiana, ou Rissorgimento, que expulsou o papado do domínio territorial romano foi tão siginificativa quanto eventos acontecidos bem longe da Santa Sé.

O Império Brasileiro (1822-1889) foi a última grande monarquia européia estável a sobreviver ao longo do século XIX. Não é coincidência que ela estivesse separada das revoluções européias por um imenso oceano desde 1808. É no mínimo interessante que o colapso do papado tenha sido testado por nossas bandas, pois o Segundo Reinado (1840-1889) foi marcado por conflitos severos entre a ala ultra-montanista (que trabalhava pela autoridade do papa para além dos Alpes) e um catolicismo bem mais diversificado que havia sido forjado por três séculos de desprezo pastoral pelos trópicos.

É interessante pensar que no Brasil (e também na América Latina) se forjou um catolicismo moreno (termo cunhado pelo historiador Hoornaert), altamente sincrético e pouco alcançado por presença territorial do clero. Um catolicismo de “muita festa muito santo, pouco padre pouca missa”, que tinha um Imperador simpático que apoiava um catolicismo jansenista, mas era amigo do pessoal do médico, jornalista e pastor congregacional Robert Kalley – primeiro missionário a fundar uma igreja evangélica para brasileiros. O mesmo imperador chegou ao cúmulo de nomear um maestro protestante para a Capela Imperial (Hugo Bussmeyer, alemão que assumiu o cargo em 1875). Um dos múltiplos fatores que levaram ao fim da monarquia em 1889 foi a Questão Eclesiástica, onde o Imperador foi pressionado pela direita católica, mas o resultado final foi uma monarquia laica e uma inédita separação Igreja/Estado que viria a ser rompida oficialmente por Getúlio e celebrada com a construção do Cristo Redentor.

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Estou metendo a América Latina nesta história que alguém poderia pensar ser exclusivamente européia só para reforçar uma interpretação que acho muito importante.

Sempre que um papa sai, e é preciso escolher um próximo, levanta-se a questão da possibilidade de um papa latino-americano, capaz de dar uma face mais humana e diversificada à Igreja Romana. É absolutamente improvável que isso aconteça, ainda mais se lembrarmos que os últimos dois papas passaram seus dias combatendo o único movimento católico a surgir no Terceiro Mundo: a Teologia da Libertação. Lembremos que, quando ainda era o braço direito de João Paulo II na luta contra o comunismo, Ratzinger excomungou Leonardo Boff, um dos mais criativos teólogos do século XX.

Não era apenas a ousadia reflexiva de Boff que se estava condenando. Era a ousadia prática das Comunidades Eclesiais de Base, das pastorais, de todo aquele efeito colateral causado pela movimentação da Igreja em direção ao laicato. Quando a República obrigou a Igreja Romana a viver sem o apoio do Estado no Brasil, a estratégia da Igreja de Roma foi aprofundar suas ligações com a elite oligárquica, e dar força e voz política ao laicato, que se expressou na Liga Eleitoral Católica, espécia de versão brasileira da Democracia Cristã européia.

Que esse laicato tenha passado a pensar com a própria cabeça e se aproximado da esquerda política nas décadas seguintes não era um efeito desejado na cúria romana. Assim é que o combate a essa ala progressista da Igreja (sediada principalmente no chamado “Extremo Ocidente“) passou a ser prioridade em Roma.

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Mas se a História é tão feia e triste, porque o título desse post fala em “prenúncio de abertura”?

Porque eu considero inédita em toda a História do Cristianismo uma renúncia voluntária e espontânea de um Papa. Por mais que ele tenha feito isso para escapar a pressões. A renúncia é um método radical e legítimo de fazê-lo, e a História do Brasil é farta de exemplos. Ao invés de uma atitude covarde, pode ser interpretada como coragem e ousadia, como se costuma fazer ao interpretar o suicídio de Getúlio.

A renúncia de Bento XVI é um evento político de significado extremo. Quando um papa diz, de livre e espontânea vontade, que não quer mais ser papa, coloca em cheque aquela tese de Agostinho sobre a divindade do cargo eclesiástico. Não se renuncia a um dever divino.

Se o cargo de papa passar a ser transitório como a maioria absoluta dos governos atuais, a base antiquíssima da autoridade da Igreja está rompida.

Num mundo em que cada vez menos católicos vão à Igreja, ou dão pelota para o que diz o papa do alto de sua infalibilidade dogmática, é possível que a dinâmica da comunidade, que eclodiu no Concílio do Vaticano II e nas reuniões de Puebla e Medellín mostre à hierarquia que o protagonismo do “povo de Deus” é o único e verdadeiro protagonismo cristão possível.

Deste ponto de vista, é completamente indiferente quem vai ser o próximo papa. Só importa saber que Ratzinger evidenciou com seu gesto que o papado já não é mais aquele, e a Igreja Romana se tornou inviável no mundo de hoje.

Comentários

Uma resposta para “A renúncia de Ratzinger: prenúncio de abertura?”

  1. Avatar de Catatau

    Lindo post André, obrigado!

    Belíssima colocada de questão, a da decisão do papa grosso modo entre a igreja institucional e a via mais “espiritualista” entrevista pelo monasticismo. O post também manda muito bem pq abre um diálogo bem alheio ao que se tem feito por aí, pois agem como se tudo se resumisse simplesmente a hagiografias ou demonizações da decisão.

    De minha parte, fico pensando no que se passaria na cabeça do Papa, em primeiro lugar com sua eleição – que a meu ver deixou um certo sentimento de frustração e surpresa, visto que haviam outros papas mais “espirituais” e também mais jovens a serem eleitos, sem contar a miopia de Bento XVI sobre focar-se prioritariamente na Europa – e em segundo lugar com essa surpreendente renúncia. Dá a impressão de que ele está realmente vendo o movimento de que a igreja cede lugar rapidamente a outras formas de governo das almas, enquanto ele se vê mais velho e fraco e literalmente não aguenta mais o tranco. Como se ele finalmente percebesse que seu velho ranço escolástico e institucionalizado não fosse suficiente, junto com a queda de suas forças, para enfrentar nosso mundo de publicidade e culto ao idiotismo dos hormônios, coisa que chamam talvez equivocadamente de “jovem”. Como se, finalmente, ele decidisse em meio a tanta coisa a passar a bola, coisa que talvez devesse decidir bem antes, talvez até ajudando a escolher um papa mais próximo à “espiritualidade” de João Paulo II…

    Mas enfim, é curioso que Jesus teve pelo menos dois traidores: um o entregou e se matou, enquanto o outro o negou e virou o primeiro papa. Os dois se arrependeram, cada qual a seu modo. Mas o curioso é a geração desse surpreendente mecanismo, o de que por determinados motivos certas alianças ou continuidades podem ser restabelecidas por rupturas, coisa que talvez se vê ou se quis ver desde Davi pelo menos.

    Abraços e obrigado,