A importância da cerveja artesanal

Capa do 3º número da Revista da Cerveja
Capa do 3º número da Revista da Cerveja

Sempre fui um convicto bebedor de cerveja, e acho que fiz uma trajetória que não deve ser de todo incomum: inicialmente bebi cerveja como forma de sociabilidade. Aquela história de ter um monte de amigos que bebem cerveja, formando círculos nos quais as melhores conversas giram em torno de garrafas e copos, com um convite que normalmente é feito assim: “vamos tomar uma?”. Neste contexto,  “tomar uma” quase sempre deve ser entendido por “tomar várias”.

Ao mesmo tempo, bebia cerveja para refrescar. Tipo “tá um calor, preciso tomar uma cerveja”. Moro em Curitiba, e é preciso que se saiba que aqui a gente toma cerveja para se refrescar mesmo quando a temperatura está próxima do zero grau. Também não temos praia para combinar com cerveja, de modo que o tal “efeito refrescante” deve ser entendido de forma bem elástica.

Então era assim: beber cerveja era aquela coisa de uma desculpa para conversar, fazer amigos e “refrescar”. Neste contexto, não beber significa ser o chato, o insociável. Sentado em uma mesa para este tipo de ocasião, as pessoas vão enchendo teu copo, e beber pouco também costuma ser um crime terrível. Também é preciso dizer que neste tipo de “círculo de sociabilidade” a cerveja deve estar muito gelada, e que servir uma cerveja mal gelada é a pior coisa que um estabelecimento pode fazer com o freguês. Também é um sacrilégio você, bebedor, deixar a cerveja “esquentar” no copo. E uma grande quantidade de garrafas de cerveja em cima da mesa é uma façanha computada na conta do heroísmo do bom bebedor.

Obviamente que o efeito colateral do processo acima descrito é o estado de alcolização, as ressacas, os vexames e os diversos problemas decorrentes. Nada que não possa ser controlado, nada não esteja sempre na iminência de descambar para um estado sem volta. De vez em quando a gente se depara com um bebedor inveterado que “está dando um tempo”, que não vai beber hoje porque já passou muito mal, e etc. Mas normalmente, se quiser mesmo ficar sem beber significa deixar de encontrar aqueles amigos e frequentar aqueles lugares.

Mas em anos recentes eu fui passando por transformações na experiência de beber cerveja.

Primeiro foi aquela fase de começar a perceber que o exagero com a bebida estava ficando recorrente, e foi preciso abandonar o círculo de sociabilidades que, nos meus tempos de juventude atendia pelos nomes de Dolores e Largo da Ordem. (Quem viveu em Curitiba nos anos 1990 vai saber do que estou falando).

Depois foi começar a transição do beber muito, e qualquer coisa que estivesse gelada e tivesse alcool na composição e um aspecto amarelo, para beber pouco e prestar mais atenção no sabor da coisa. As primeiras referências que tive disso foram aquelas discussões básicas de bebedores de cerveja: “eu prefiro Skol” ou “eu prefiro Antártica”, ou “a Kaiser é melhor”. Tinha também aquela: “no Rio de Janeiro a Kaiser é uma porcaria, mas aqui até que ela está boa”. Durante muito tempo ouvir essas conversas com a seguinte ideia em mente: “como são burros, cerveja é tudo igual”.

É preciso que se diga que por esta época eu tinha com a comida a mesma relação que tinha com a cerveja. O leque do que eu considerava comida boa era muito amplo na minha concepção, ao mesmo tempo em que as opções gastronômicas nos restaurantes e bares, bem como nas casas que eu frequentava eram (hoje percebo) extremamente restritos. A questão principal era: comida boa a gente deve comer bastante.

Note que as maiores fábricas de cerveja exploram exatamente este tipo de experiência etílica em sua publicidade bilionária. Nenhuma cerveja é boa por ser boa cerveja. Todas são boas porque quem bebe está feliz, com bons amigos e mulheres bonitas. Cervejas são mesmo todas iguais, e mais importante do que fabricar alguma coisa com sabor é ter uma boa distribuição, bares exclusivos, festas com artistas, camarotes não sei onde e times de futebol.

Devo considerar que o ponto de ruptura, pra mim, foi a experiência de beber a cerveja Original. Essa foi realmente a primeira cerveja que eu bebi que me pareceu ter um sabor melhor que as outras. Durante algum tempo vivi aquela experiência limítrofe de preferir Original, ir a bares que tivessem Original, etc.

Depois foram chegando uma série de informações esparsas que, claro, não passam pela grande mídia. Primeiro, que as cervejas industriais passam por um processo de pasteurização que piora o sabor e torna o produto maléfico à saúde. Melhor o chope do que a cerveja é uma primeira constatação que leva o sujeito a prestar mais atenção nos detalhes, procurar diferenças de sabor, e tal.

Depois começaram as informações sobre cervejas importadas. Primeiro foi o professor de um curso de alemão, contando que na Alemanha a experiência de beber cerveja é uma cultura gastronômica altamente desenvolvida, e que na Alemanha (especialmente no sul) beber cerveja no copo errado é mais vergonhoso do que ficar pelado na praça. Esse tipo de informação também começa a sincronizar com informações sobre vinhos, que à mesma época começa a ser percebido como uma bebida de qualidade muito variável. Viajar por Santa Catarina e começar a ver por alguns lugares as pessoas bebendo cervejas alemãs, especialmente a Erdinger Weissbier, uma cerveja de trigo que tem o copo tão bonito que é difícil não ficar cativado por ele. Detalhe que um dia ganhei de um amigo muito especial um conjunto de cerveja e copo. Aquilo foi a grande ruptura. Verdade que fiquei muito tempo sem comprar de novo a Erdinger, porque era cara pro meu orçamento (à época em torno de R$ 8 uma garrafa de 500 ml, que dá um copo – hoje anda pela casa dos R$ 12,00). Desenvolvi então a estratégia de substituição por produto nacional, a Bohemia de Trigo, por um terço do preço e bom sabor. Foi a estratégia para não deixar meu copo em desuso.

Hoje cheguei à conclusão de que beber boas cervejas é uma das coisas principais da vida – tanto como comer boa comida e beber bons vinhos. É tudo coisa que custa dinheiro e dá trabalho. Comer e beber porcaria é mais barato, mais rápido e mais fácil. Mas, a vida é tão curta, e afinal o que é mais importante mesmo?

Acontece que, frequentando a excelente Armazém da Serra no Mercado Municipal de Curitiba, hoje o meu principal ponto para comprar cervejas que ainda são difíceis de comprar em supermercado, me deparei com a Revista da Cerveja, cuja capa está digitalizada no início deste texto. E lá, entre diversas coisas muito interessantes, está uma matéria com o mestre cervejeiro norte americano Garrett Oliver, que veio ao Brasil e deu entrevista à revista, de onde extraio as seguintes considerações.

Falando sobre o mercado de cervejas artesanais nos Estados Unidos e sobre a importância estratégica da cerveja artesanal para um país:

Atualmente são 2.170 cervejarias que empregam mais de 100 mil pessoas, enquanto as grandes cervejarias empregam apenas 25 mil. As grandes tem 94% do mercado e nós apenas 6%, mas empregamos 4 vezes mais que elas. Nós criamos empregos, lugares de confraternização, estamos tentando ser criativos, fazendo colaborações com chefs, com produtores de vinho, com produtores de café, e construindo uma comunidade, o que as grandes cervejarias não fazem. O negócio delas é volume. As pequenas possuem muitas desvantagens, principalmente aqui no Brasil, onde as grandes podem fazer contratos de exclusividade com os bares e restaurantes para barrar as artesanais. Nada mais justo do que dar às pequenas cervejarias algumas vantagens, para que elas também possam crescer. Se o Brasil tiver sorte e perícia, não levará muito tempo para chegar às duas mil cervejarias. A diversidade é que é o normal. O estranho é ter uma ou duas empresas controlando tudo e obrigando as pessoas a beberem um único tipo de cerveja. Qual dos dois modelos deve ser apoiado por um governo que se importa com as pessoas?

E falando sobre a cerveja como alimento:

O que estamos fazendo é levar a cerveja de volta à condição de alimento, para que as pessoas parem de beber em quantidade. Quem bebe cerveja de qualidade passa a beber menos, porque está bebendo melhor. O mesmo acontece com a comida. Quem se alimenta de fast food ou junk food precisa comer bastante para conseguir algum prazer, porque o sabor em si não satisfaz. Você não pega um bom vinho e sai bebendo direto. Primeiro você movimenta o copo em círculos, depois cheira. Você quer desfrutá-lo por algum tempo. São cervejas assim que queremos fazer, cervejas que as pessoas apreciem com calma. Cerveja é alimento. O nosso pão está virando esponja, nosso queijo parece plástico e nossa cerveja está virando água, uma água amarela com gás e álcool. Vai chegar o dia em que as grandes cervejarias irão misturar álcool com água gaseificada, corantes e aromatizantes e vão chamar de  cerveja, porque o sabor não vai ser muito diferente da cerveja que eles fazem hoje. Eu tenho certeza que se eles descobrirem uma forma de fazer isso cortando ainda mais os custos, é isso que farão. Mas isso não é o que estamos fazendo. Nós estamos cozinhando. Nós temos sabores em mente e queremos colocá-los na cerneja. Essa é uma coisa importantíssima, levar novamente a cerveja à condição de alimento. É isso que realmente sigfnifica cerveja artesanal.

Bem, falou e disse Garrett!


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