Este texto é uma análise e um comentário sobre o primeiro episódio da série documental Jazz, de Ken Burns. Pra quem assistiu o documentário, aqui vai um pequeno guia das fontes de informação do episódio.
Ken Burns documentarista
Ken Burns é um dos grandes documentaristas contemporâneos. Para compreender sua importância, podemos ver o que diz seu perfil na Base Internacional de Dados de Cinema (IMDB, na sigla em inglês):
Célebre documentarista americano que gradualmente acumulou uma reputação considerável e um público dedicado com uma série de meditações tranquilizadoras sobre a cultura americana. As obras de Burns são tesouros de materiais de arquivo; ele habilmente utiliza música e filmagens de época, fotografias, periódicos e correspondências de pessoas comuns, que são lidas com frequência por atores profissionais experientes, numa tentativa deliberada de se afastar da abordagem do “grande homem” da história. Como a maioria dos cineastas de não ficção, Burns desenvolve muitas funções em seus projetos, muitas vezes atuando como escritor, diretor de fotografia, editor e diretor musical, além de produzir e dirigir.
Ken Burns também é um profissional MUITO produtivo. Ele está produzindo um documentário sobre o boxeador Muhammed Ali, entre vários outros projetos. Suas produções de 2019 incluem mas de uma dezena de trabalhos, incluindo vários episódios de uma série sobre música country para a TV pública norte-americana PBS.
Para o público brasileiro, o jeito mais fácil de entrar em contato com a produção de Ken Burns é assistindo aos trabalhos que estão disponíveis na Netflix. No momento em que escrevo, são um filme e três séries documentais, sobre a lei seca, a segunda guerra mundial e a guerra do Vietnã:
https://www.netflix.com/title/70281600
https://www.netflix.com/title/70202579
https://www.netflix.com/title/80997770
https://www.netflix.com/title/80103430
A série Jazz e o episódio 1
A série documental sobre o Jazz foi produzida originalmente para a rede norte-americana PBS. Era uma versão com 10 episódios. Existe uma outra versão, com 12 episódios – que é a que foi lançada em DVD no Brasil. Nesta série, os episódios são:
- 1 – Gumbo – o começo até 1917
- 2 – A dádiva – de 1917 a 1924
- 3 – Nossa linguagem – de 1924 a 1929
- 4 – As verdadeiras boas vindas – de 1929 a 1934
- 5 – Swing, puro prazer – de 1935 a 1937
- 6 – Swing – a velocidade da celebração – de 1937 a 1939
- 7 – Suingando com as mudanças – de 1940 a 1942
- 8 – Dedicado ao caos – de 1943 a 1945
- 9 – Risco – de 1945 a 1949
- 10 – Irresistível – de 1949 a 1955
- 11 – A aventura – de 1956 a 1960
- 12 – Uma obra-prima por volta da meia noite – de 1960 ao presente
Pode-se ver que o foco da série é na visão do jazz tradicional ou autêntico, considerando seu período áureo entre 1917 e 1960. Também é dado bastante peso ao jazz como produto fonográfico, embora também se fale bastante do jazz ao vivo, da transmissão radiofônica e outras formas de circular o jazz.
Nas aulas de História da Música da UNESPAR tenho costumado exibir alguns episódios, a partir dos quais discutimos alguns momentos chave da história do jazz e da música popular. O episódio 1, sobre as origens; o 4, sobre o colapso da indústria fonográfica e a nacionalização da audiência pelo rádio; o 9, que inclui o surgimento do Be Bop; o 10 que aponta as primeiras experiências de vanguarda no jazz.
O primeiro episódio tenta dar conta das vertentes que levaram ao surgimento do jazz. Aborda a presença dos escravos nos Estados Unidos, a vinda de populações do Caribe para New Orleans, os vários gêneros musicais que teriam se mesclado para a formação do jazz, os personagens pioneiros na formação do estilo e o estabelecimento do jazz como gênero fonográfico.
Episódio 1 – pressupostos e crítica
Gosto de exibir o documentário para minhas turmas por causa da riqueza documental, principalmente imagens, áudios e depoimentos de especialistas. Mais adiante comentarei estes aspectos.
Para o objetivo da aula, o documentário tem vários problemas conceituais. É claro, não é fruto de trabalho acadêmico e não propõe uma visão crítica da história do jazz. Assume como naturais ou como fatos diversos pressupostos que não passam de opinião, enfoque, ou, em última instância, ideologia.
Este texto deve ser acompanhado de um áudio comentando mais detalhadamente algumas destas questões. (No momento em que escrevo e publico este texto, estamos no meio da pandemia do COVID-19, tentando fazer material online para não interrompermos as aulas na UNESPAR). Aqui vou apenas apontar algumas questões.
A principal referência no documentário é o músico, professor e pesquisador Wynton Marsalis. Isso é bom, porque ele é excelente. O único problema é que Marsalis é muito ligado a algo que podemos chamar de revival do dixieland – um fenômeno em certa medida parecido com o que acontece no Brasil com a tradição do choro. Ou seja, Wynton Marsalis é um músico que tende a valorizar certa tradição do jazz como a mais importante ou a única. Em última instância ele tem limites mais estreitos do que pode ser ou não considerado jazz, ou mesmo música.
Wynton Marsalis
Além de grande jazzista, Wynton Marsalis também é crossover com a música clássica, tendo sido solista de trompete com orquestras em repertório tradicional de concerto. Entre seus principais trabalhos está a direção da Jazz at Lincoln Center Orchestra, com a qual esteve em São Paulo em 2019. A JLCO já lançou 4 discos em 2020 (só estamos em março), e vem mantendo esse incrível ritmo de trabalho há anos. Veja o perfil deles no Spotify.
Um dos principais trabalhos de Wynton Marsalis tem sido a restauração de execuções de jazz tradicional, tarefa para a qual produz um conhecimento comparável à dos músicos especializados na produção barroca. Para o documentário, além das várias falas e comentários diante das câmeras, Wynton Marsalis fez um outro trabalho ainda mais importante: os arranjos e gravações de 3 músicas de Buddy Bolden com seu sexteto. Uma dessas músicas, Buddy Bolden’s Blues pode ser vista em uma apresentação de Marsalis e seu conjunto num clube novaiorquino, em 2012:
Ou seja, além do grande trabalho de “garimpar” gravações antigas em acervos, museus e em gravadoras, Ken Burns ainda encomendou a recriação de obras para Wynton Marsalis. Para termos uma ideia da importância desse trabalho de “música antiga” do jazz feito por Marsalis, foi ele quem criou a trilha sonora do filme sobre Buddy Bolden lançado em 2019 nos EUA. Veja o trailer:
Essa visão tradicionalista do jazz acaba dando o tom de toda a série documental, mas isso é mais forte e mais notável no primeiro episódio. Aqui vemos alguns pressupostos que não podem ser confirmados pela historiografia mais crítica e recente do jazz, mas que soam bem na hora de construir o discurso de autenticidade e originalidade que o documentário também se propõe.
Entre esses pressupostos estão o de que o jazz nasceu em New Orleans, que ele foi produto de músicos negros, que mesclou várias correntes da música do século XIX, principalmente o ragtime e o blues e que foi obra inicial de alguns personagens heróicos cuja trajetória precisa ser resgatada.
Os personagens destacados na parte final do episódio são: Buddy Bolden; Jelly Roll Morton; Fred Kepard; Sidney Bechet; The Original Dixieland Jazz Band. Personagens secundários são mencionados mais de passagem: Kid Ory, King Oliver e Papa Jack Laine. Interessante pontuar, quanto a esse aspecto, que todos estes personagens surgem de uma tentativa muito posterior de resgate das origens do jazz considerado autêntico. No momento em que esses músicos estavam atuantes eles recebiam pouca ou nenhuma atenção do público, dos críticos ou dos intelectuais.
Fontes documentais e autoridade
Umas das coisas mais importantes para quem assiste um documentário é confiar na veracidade e fidedignidade das informações. Isso pode ser feito de várias formas, principalmente apresentando material audiovisual crível. No documentário de Ken Burns essa questão é muito bem trabalhada. Mas outro recurso fundamental é trazer a opinião de especialistas, que falam diante das câmeras para conferir autoridade à narrativa.
Além de Wynton Marsalis, que é muito mais do que um entrevistado e, como vimos, contribui também com uma linha interpretativa geral e até reconstituições musicais, o episódio mobiliza importantes especialistas. Em geral, fico em dúvida se as falas deles no vídeo traduzem realmente suas opiniões como pesquisadores, ou se os trechos usados são recortados de modo a referendar a visão mais tradicionalista que o documentário se propõe. Para nós, no Brasil, a simples aparição deles no vídeo não diz muita coisa, então vejamos quem são as autoridades mobilizadas por Ken Burns, por ordem de aparição:
Gerald Early
No documentário, a legenda o apresenta, durante sua primeira fala, simplesmente como “Gerald Early, escritor”. Ele é muito mais: como define o verbete da wikipedia, ele é crítico cultural e ensaísta. É ligado ao Centro de Humanidades da Universidade Washington em Saint Louis, Missouri. Ali é Diretor, professor de Letras Modernas, Inglês, Estudos Africanos, Estudos Afro Americanos e Estudos Culturais Americanos.
Entre suas publicações, destaco duas que tratam de música, especificamente de momentos chave da música como expressão da cultura e da comunidade negra:
Gary Giddins
A legenda do documentário o apresenta como “Gary Giddins, crítico”. Mas ele foi crítico de jazz e de cinema, escritor e biógrafo, roteirista e produtor.
Gary Giddins trabalhou por décadas como crítico de música e de cinema na revista novaiorquina The Village Voice. Atualmente publicada apenas online, a revista circulou impressa entre 1955 e 2017. Era ligado ao que foi por muito tempo um dos principais bairros intelectuais e boêmios da cidade – o Greenwich Village.
Giddins publicou biografias de Louis Armstrong, Bing Crosby e Charlie Parker. Escreveu e produziu documentários sobre esses personagens para a série American Masters do canal PBS.
Albert Murray
Apresentado na legenda como “Albert Murray, escritor”. Melhor definido como crítico de jazz, romancista, ensaísta e biógrafo. Como revela a capa do livro na imagem ao lado, é considerado uma referência para interpretar a cultura norte-americana.
Entre os livros de sua autoria, podemos destacar dois, que interpretam a cultura norte-americana pela ótica da experiência negra e da importância do blues:
Stomping the Blues The Hero and the Blues
Bruce Boyd Raeburn
Apresentado na legenda como “Bruce Boyd Raeburn, historiador”. Importante saber que ele é filho do saxofonista e band leader Roy Raeburn e da cantora Ginni Powell. É professor de História na Universidade Tulane, em New Orleans. É curador do Hogan Jazz Archive e Diretor de Coleções Especiais na Universidade Tulane.
Raeburn é autor do livro New Orleans Style and the Writing of American Jazz History e de vários artigos acadêmicos sobre a história do jazz em New Orleans.
Stanley Crouch
Na legenda, é apenas “Stanley Crouch, escritor”. Mas é melhor definido como poeta, crítico musical e cultural, colunista, romancista e biógrafo. Entre vários livros que escreveu, alguns de ficção, está uma biografia de Charlie Parker.
Doc Cheatham
Apresentado como “Doc Cheatham, trompetista”. De fato, é isso. Mas para entender porque é importante trazer a fala de um trompetista no documentário, seria interessante entender quem é Doc Cheatham, qual a relação dele com a tradição e a história do jazz. Primeiro, seria importante apontar que ele nasceu em 1905, e gravou seu depoimento anos antes do documentário ser lançado, quando já tinha falecido. Fatos interessantes de sua carreira:
- começou a gravar na década de 1920
- substituiu eventualmente Louis Armstrong no Vendome Theater em Chicago
- foi primeiro trompetista na banda de Cab Calloway na década de 1930
- nos anos 1940 tocou em várias bandas, entre elas a de Fletcher Henderson
- nos anos 1960 teve sua própria banda, tocando na Broadway
- no final da década excursionou com Benny Goodman
- na década de 1970 reinventou sua carreira, estudando para eliminar todos os clichês de sua improvisação, e passando a receber atenção mais favorável da crítica. Passou também a atuar e gravar como cantor.
Muito interessante este vídeo, em que ele aparece aos 80 anos, fazendo um solo incrível. Filmado em 1985 no Ritz Hotel em Londres. Destaque também para o solo de bateria de Max Roach.
Arquivos de gravações
Uma das partes mais positivas do trabalho de Ken Burns neste documentário é o resgate de gravações de arquivo. Como está tratando de um período em que a indústria fonográfica estava na infância, e o jazz sequer era considerado um gênero gravável, aqui o trabalho de garimpar arquivos se tornou essencial. Para identificar as fontes de pesquisa precisa atentar para os créditos finais do audiovisual (usando o botão de “pause”, porque passa tudo muito rápido).
Parte significativa dessa pesquisa deve à atuação de Wynton Marsalis, como destacado acima. Ele fez arranjos e gravações para três temas que remetem a Buddy Bolden: Make Me a Pallet on the Floor, Buddy Bolden’s Blues e Carelass Love.
Outras gravações vieram cedidas do acervo de diversas gravadoras, há áudios de gravações de campo cedidos pela coleção de Alan Lomax, há gravações do Smithsonian Folkway Recordings.
Arquivos de imagens
Outra riqueza do documentário são as fotografias de época. Aliás, lembrar que o episódio trata de uma época em que havia pouca possibilidade de fazer filmes, e quando eles eram feitos, não tinham som. Para contornar essa limitação, Ken Burns usa bastante o recurso de filmar uma fotografia, fazendo a câmera se aproximar e se afastar – com isso pode tanto enfatizar detalhes da imagem como provocar a sensação de movimento. Tudo isso se faz combinado com o som, ou do depoimento dos especialistas citados acima, ou de gravações pesquisadas nos acervos.
Entre os principais acervos de imagens consultados, uma lista de dezendas deles, podemos ressaltar:
Frank Driggs Collection. Coleção de fotos do produtor fonográfico e escritor, que foi doada ao Jazz at Lincoln Center em 2013. Algumas fotos de Duke Ellington na coleção podem ser vistas aqui:
http://edan.si.edu/slideshow/viewer/?eadrefid=NMAH.AC.0389
Duncan Schiedt Collection. Sobre este acervo, melhor ler o que informa o sítio da Sociedade História de Indiana, onde podemos ver algumas imagens:
O fotógrafo e escritor Duncan Preston Schiedt era uma figura internacionalmente conhecida nos círculos de jazz e autor de quatro livros sobre jazz. Suas fotografias apareceram em todo o mundo em publicações, discos, exposições de arte, filmes e em festivais de jazz. Incluídas nesta coleção digital, estão suas fotografias em preto e branco de músicos de jazz conhecidos, incluindo Louis Armstrong, Duke Ellington, Count Basie, Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Miles Davis e muitos outros.
Louis Armostrong Archives, Queens College, que inclui as coleções do Louis Armstrong Museum.
Espólio de Irving Berlin, na Brodway.
E segue uma longa lista. Quero ressaltar uma questão importante: como os norte-americanos são ciosos da preservar documental e da memória! Isso é uma coisa que a gente estranha muito no Brasil, e que está apenas começando aqui. Lá é uma quantidade muito grande de acervos pessoais bem cuidados, administrados e publicizados. Embora os EUA sejam considerados um país liberal, com pouca estrutura diretamente na mão do Estado, eles tem toda uma ecologia de instituições culturais privadas, financiadas, na verdade, com renúncia fiscal.
Arquivos de filmes
Aqui o trabalho é ainda mais notável. Ken Burns mobiliza uma pesquisa em acervos de imagens fílmicas em universidades, bibliotecas e instituições, principalmente nos EUA, mas também em Paris. Há ainda acervos particulares de cineastas, e a colaboração do espólio de Duke Ellington.
História da Música V
Este post faz parte de uma série que estou fazendo para a disciplina de História da Música V, na UNESPAR. A lista completa das postagens será atualizada à medida das publicações:
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