Fábio Cury – foto de Heloisa BortzTexto antigo, publicado originalmente em 15/06/2011
Fábio Cury veio para um concerto ontem em Curitiba, para a série Solo Música, produzida por Alvaro Collaço e patrocinada pela Caixa Cultural.
Esta série é um negócio genial: sempre às terças à noite, no Teatro da Caixa, com uma programação de artistas solo, mas valorizando os músicos que dificilmente são vistos tocando sem um conjunto.
As 16 valsas para fagote solo de Francisco Mignone são assim um achado. Praticamente não existe repertório para fagote solo – é um instrumento grave de palheta dupla, de difícil escrita, e normalmente não muito ágil. Integra também a formação clássica do Quinteto de Sopros (com flauta, oboé, clarinete, trompa e fagote), participa em trios, faz até repertório com piano.
Mas solo, solo mesmo, é coisa rara.
A existência desse maravilhoso ciclo de peças do Mignone se deve ao fagotista Noel Devos, radicado há muitos anos no Brasil, professor de gerações de músicos do instrumento e o principal fomentador do repertório. Foi para Devos que Mignone escreveu o ciclo, e o professor já havia gravado a obra para a série Memória Musical da FUNARTE (em vinil), posteriormente relançada em CD pelo Itaú Cultural.
Eu tenho o vinil na minha coleção, tudo coisa que não escuto há anos, que não tenho mais aparelho para tocar. Coragem de me desfazer dos discos não me vem. E eu tinha então uma vaga lembrança dessas peças, que com certeza estiveram entre as boas coisas que ouvi na adolescência, e que me atraíram e me apaixonaram pela música erudita brasileira, a ponto de eu me tornar pesquisador do assunto.
Ver o ciclo ao vivo tanto tempo depois foi uma experiência e tanto. É claro, música de concerto foi feita para se ouvir no teatro de concertos, não nos auto-falantes de uma engenhoca, que só pode trazer uma experiência parcial.
E Fábio Cury tocou com maestria. As peças são muito difíceis, exploram toda a extensão do instrumento. Abusam dos graves, que deveriam ser evitados por soarem pesados, de difícil afinação e articulação. Abusam dos agudos, que soam agressivos e de difícil emissão. Abusam dos arpejos e dos saltos melódicos, que não são a vocação dos instrumentos de sopro. Tudo isso a execução de Fábio Cury contornou com perfeição.
Como valsas, as peças do Mignone são um show de variedade. Confesso que fiquei o concerto inteiro procurando quando o 3/4 das partituras soaria evidente – mas não aconteceu nenhuma vez. Tudo muito fluído, e a execução bastante lírica de Fábio Cury ressaltou este aspecto da obra. São valsas, mas a rítmica é muito livre, o lirismo melódico das valsas seresteiras das quais Mignone foi o maior mestre no Brasil.
Mignone também é reconhecido como o maior orquestrador/instrumentador já existido no Brasil. Coisa que este ciclo de peças confirma de maneira soberba: só conhecendo exatamente tudo do que o instrumento é capaz seria possível escrever um ciclo tão bem acabado, tão musicalmente significativo, tão artisticamente relevante. Mignone foi um mestre, sem dúvida.
E o solista me pareceu talhado para a apresentação solo: a presença de palco, as explicações sobre as obras, a empatia com o público – tudo se somou à qualidade da execução, à profundidade do discurso interpretativo. Estávamos todos diante dum dos gigantes do instrumento, foi o que pudemos perceber.
Veja também a interessante matéria feita antes do concerto pelo Jornal Gazeta do Povo.