Sigo minha saga em busca de informação confiável sobre história da música para a disciplina que comecei a ministrar este ano na FAP (História da Música I, que vai da Antigüidade ao Barroco). Os outros textos que já escrevi sobre os temas das aulas são os seguintes (e os futuros que serão escritos também aparecerão na seção História da Música I aqui do blog):
Quando começa a História da Música?
Sobre o surgimento da notação musical durante o período carolíngeo
A pista que estou seguindo no momento se refere ao tema “surgimento da polifonia”. Como os demais assuntos tratados nos textos anteriores indicados acima, esse é outro tema cercado de mistificações. No texto sobre o surgimento da notação eu afirmei que é um problema grave que todas as teorizações sobre Canto Gregoriano sejam feitas em bases documentais tão frágeis. Afinal, o mais antigo documento existente é um Códice da Biblioteca do Mosteiro de Saint Gallen, datado de 925, em notação por neumas não diastemáticos. Quando os livros de história da música vão discutir as questões da entonação do Gregoriano, recorrem aos documentos musicais produzidos pelos monges de Solesmes no século XIX, o que é uma abordagem “elíptica”, para dizer o mínimo.
Então, eu estava pensando que teria sido justamente o surgimento da polifonia que viesse obrigando uma precisão maior no sistema de notação, e afinal, no século XI Guido D’Arezzo já estava preconizando uma notação em pauta de quatro linhas, que indicasse com maior precisão as alturas a serem cantadas. A informação que eu tinha (manuais e senso comum, basicamente) era de que os primeiros documentos com registro de música polifônica eram os que estavam no Codex Calixtinus, um manuscrito do século XII que servia basicamente de “guia de viagens” para o Caminho de Santiago de Compostela, a principal trilha de peregrinação européia medieval, mas que incluía também registros de música a ser cantada pelos devotos.
Então lá vou eu buscar o documento original na internet, afinal hoje várias bibliotecas, institutos e pesquisadores disponibilizam material histórico tornando mais favorável o acesso aos comuns dos mortais. Gastei muitas horas e usei todo meu conhecimento de mecanismos de busca, mas consegui apenas um acesso parcial ao documento, e junto com isso tudo, mais alguma informação interessante.
A primeira pista mais importante que encontrei foi um documento existente na Biblioteca Nacional de Portugal, um Códice que reúne cópias de vários manuscritos sobre vidas de santos, incluindo uma cópia “coeva e muito completa” do Codex Calistinus, cujo original (ou cópia mais antiga) seria da Biblioteca da Catedral de Santiago de Compostela. Está aqui a ficha na biblioteca digital, com acesso ao pdf completo. Mas o fato é que a leitura do documento mostra que se trata apenas do texto escrito, sem as ricas ilustrações coloridas que eu ouvi serem parte do documento original, e muito menos o que mais me interessava – as “partituras” anexas. Descobri a existência dessa cópia portuguesa no Banco de dados das hagiografias ibéricas, do Programa de Estudos Medievais da UFRJ (pdf aqui).
Parênteses para uma curiosidade grotesca: a pesquisa na internet revelou notícias de que o livro original tinha sido roubado da Catedral de Santiago por um eletricista que trabalhou na igreja por anos (veja um pouco aqui). Parece que o documento já foi recuperado. As notícias falam em “documento de valor incalculável” e “roubo do século”.
Uma coisa curiosa que encontrei meio por acaso na pesquisa foi a Dissertação de Mestrado de Virgina Videira Casco, no Instituto de Letras da UFF, que trata da temática “jacobéia” (relativa a São Tiago) no teatro barroco. Note-se que é um assunto um tanto distante do manuscrito que eu estava procurando, pois ele é datado de 1135 (aquela cópia portuguesa citada acima é de 1175). Mas logo no início da dissertação topo com esta epígrafe atribuída a Goethe: “A Europa se fez pelo caminho de Santiago”. (O pdf da dissertação está acessível aqui.)
Essa frase é bastante interessante, afinal, numa aula em que comecei a falar deste assunto para os alunos, eu disse que o Codex Calixtinus é um documento chave para pensar a entrada da polifonia na música européia como uma influência da música profana na música religiosa e como um testemunho de uma primeira ascenção de uma cultura burguesa. Isso aí reforça uma nova periodização que vem surgindo, a da Antigüidade Tardia, um conceito que explica melhor as permanências da cultura antiga avançando sobre o período que era chamado de Idade Média. Ou seja, a Europa moderna se faz peregrinando a Santiago? Pois então a música européia se faz pelo desenvolvimento da polifonia, da qual o primeiro testemunho escrito está em um livro sobre a peregrinação a Santiago.
Bom, enquanto ia procurando o documento, lembrei de um disco que eu tive copiado em fita cassete, em que o conjunto vocal Anonimous4 gravou música do caminho de Santiago. Aqui está a informação sobre o disco na página do grupo. Tem pra vender na Amazon, mas parece que o serviço de arquivos mp3 não funciona para o Brasil (ao menos dá pra ouvir trechos). Bem, tem para baixar em torrents, acho.
Uma fonte de informação muito completa sobre o Codex Calistinus é o verbete da Wikipedia em espanhol, que tem inclusive uma lista bem completa de todos os manuscritos musicais adicionados ao texto. É muita coisa, e tem uma primeira parte com música monódica, dentro do que já era costume na liturgia. Mas há um pequeno conjunto de manuscritos (Apêndice I), com um conjunto de 7 folhas, que tem música polifônica. Pelo que entendi, o disco do Anonymous4 não fica só com essa parte polifônica, mas faz um apanhado de música oriunda de toda a documentação do Códice.
Seguindo a pista da Wikipedia, a Wikimedia tem imagens do documento e os textos dos cânticos polifônicos (em latim).
Mas eu seguia não encontrando o original na internet, e a melhor pista que encontrei foi do sáite frances musicologie.org (aqui). Esta pista apontava para a existência de imagens do documento original na Biblioteca do Instituto Medieval da Universidade Notre Dame em Indiana. O link é este, mas só tem reprodução de duas páginas dos documentos que contém polifonia (pede uma senha, mas é só clicar em cancelar – talvez quem tenha senha de acesso possa consultar todo o documento). Reproduzo um trecho abaixo:
Este trecho da imagem é o que diz respeito a esta música: Annua gaudia, cujo texto está aqui.
Mais algumas curiosidades que foi possível descobrir: a mesma biblioteca da Notre Dame que tem o trecho, tem uma explicação sobre a fonte carolíngea usada na escrita dos textos.
E um outro site francês traz informações sobre a música do Codex Calixtinus, inclusive com a afirmação, que não me surpreende, de que a transcrição dos trechos musicais tem sido polêmica entre os musicólogos.
Preciso pesquisar ainda muito mais para chegar nestes estudos musicológicos mais diretos, e assim que fizer isso volto a escrever aqui sobre este interessante documento.