Foram os judeus que mataram Jesus?

Texto antigo, publicado originalmente em 3 de abril de 2010

Ontem foi sexta-feira santa. Dia de rememorar a morte de Cristo.

Uma fração do cristianismo tem uma atração mórbida pelos detalhes da paixão – sofrimento e morte. O melhor exemplo que conheço disso é o filme de Mel Gibson. Crucifixos por muitos lugares lembram quanta importância existe para as dores do Cristo, as chibatadas que levou, a coroa de espinhos, os pregos lhe entrando nas carnes, a lança perfurando seu lado.

Porque essa ênfase?

Não sei. Não consigo imaginar.

Tem muita gente que gosta de argumentar coisas do tipo: “você está sofrendo?” – “Cristo sofreu muito mais”. O argumento se reforça por que Jesus é visto como Deus. O abdicar de sua divindade já seria um baita sofrimento. Aumenta-se ainda mais pelo fato de que se diz que ele não conheceu pecado. Foi até concebido sem o “pecado” da relação sexual. Gerado pelo Espírito Santo. E mesmo sem pecado, foi condenado – carregando todo o pecado humano.

Talvez o exagero mórbido no sofrimento de Cristo queira passar esta noção: todos os castigos físicos imagináveis são ainda nada perto do peso do pecado de toda a humanidade que ele carregou na cruz! Até Deus-pai o abandonou na hora fatídica.

Além do exagero mórbido nas “lembranças” do sofrimento de Cristo (na verdade uma imagem construída, e não uma lembrança), lançou-se a invectiva: foram os judeus que mataram Cristo.

Importante refletir sobre a acusação que ecoou pelos dois mil anos de cristandade, especialmente a do Ocidente latino. Porque ela foi justificativa básica para toda a perseguição, e a violência anti-semita que o cristianismo patrocinou na Europa. Passado que teima em resistir, mesmo depois de toda a tentativa de expurgá-lo após o cúmulo das atrocidades nazistas.

Cada ortodoxo encontrado em suas rouas tradicionais, cada piedoso cumprindo os rituais de sua fé em uma sinagoga, cada fiel zeloso que não cozinhasse no sábado – podia ser espancado e morto. Afinal, seus antepassados tinham imputado sofrimento indizível ao Deus-homem. Crime que nunca prescreve. Cuja punição deve ser perene a toda a descendência de Judá.

Que sofisma teve de ser construído para sustentar esta posição!

O relato dos evangelhos demonstra que Cristo foi entregue aos tribunais pela religião do templo. Os saduceus tramaram sua prisão e insistiram em sua condenação à pena máxima. Portanto, teriam sido eles os culpados. Ou não?

Examinemos mais de perto a situação.

Os próprios evangelhos e outros trechos do Novo Testamento mostram uma visão muito diferente. Quando Cristo ceou com os discípulos, partiu o pão e distribuiu o vinho sinalizando que seu corpo e seu sangue seriam entregues. Várias passagens das Escrituras insistem em que ninguém tirou a sua vida, ele a deu voluntariamente.

Há mais a se levar em conta além dessa interpretação espiritual, que por si só já deveria isentar qualquer um da imputabilidade dessa culpa perante o cristianismo.

Acontece que Jesus era judeu. Seus discípulos eram judeus. Toda a comunidade de seguidores que se formou após a sua morte era de judeus, fossem da Palestina (hebreus), da diáspora (helenistas) ou prosélitos. Quase todo o Novo Testamento é uma discussão sobre se é possível ser Cristão sem ser judeu.

Paulo, o apóstolo, sustentava essa posição, e quase foi morto por isso. Apelou para um tribunal romano para ter a pele salva.

De certa forma, a possibilidade de existência de uma comunidade cristã à parte do judaísmo só se deu com a dispersão da comunidade de Jerusalém, após o massacre romano da revolta de 66-70.

Toda a mensagem de Jesus era judaica, e para os judeus. Era contra vários aspectos da religião dos saduceus. Mas não se pode identificar este grupo estritamente à totalidade do termo “judeu”. Eram judeus também os fariseus, os essênios, os zelotes – para ficar nos grandes grupos identificáveis. Os ensinos de Jesus tinham raízes no farisaísmo, Cristo e os discípulos freqüentavam a sinagoga e eram zelosos da lei e das Escrituras. Mas também era apoiado por frações dos saduceus, e Cristo freqüentava o templo quando estava em Jerusalém. Outros elementos eram claramente derivados dos essênios – a insistência na vida sem posses (isso não era nada difícil de se conseguir numa época em que ter duas túnicas era um luxo tremendo), no arrependimento de pecados e na solidariedade comunitária.

Somente no segundo século, quando cristianismo e judaísmo se tornaram coisas excludentes é que passou a ser possível construir uma sintaxe que imaginasse judeus como culpados pela morte de Cristo. Seria mais correto dizer que os judeus foram “culpados” de terem dado o Cristo a a nova fé ao mundo.

Soa muito paradoxal que uma comunidade que viveu sob intensa perseguição, tanto das religiões instituídas como do Estado, tenha sido capaz de se tornar ela mesma uma religião instituída, aliada ao Estado e perseguidora: dos pagãos, dos judeus e dos hereges.

Cada vez que alguém usou o argumento de que “os judeus mataram Cristo”, estava ele próprio matando o Cristo. Ao negar seus ensinamentos e seu exemplo, uma mensagem cujo cerne sempre foi o amor ao próximo.

–x–

Veja a série completa sobre a Semana Santa:

Hoje é domingo de ramos

Hoje é sexta-feira santa

Foram os judeus que mataram Jesus?

Hoje é domingo da ressurreição


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3 respostas para “Foram os judeus que mataram Jesus?”

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  3. Avatar de Michel Goulart

    Oi, André, texto muito bem escrito. Parabéns! Se Cristo já sabia de sua morte (Isaías já havia profetizado sobre), chegou a pedir a Deus para livrá-lo desse cálice. Então, realmente, Jesus entregou sua vida voluntariamente. Neste caso, os judeus não deveriam ser culpados pela sua morte.

    Além disso, Jesus pregava uma mensagem de amor e não-violência (se alguém bater na sua face esquerda, dê a direita para bater). Então, nada justifica a perseguição de “cristãos” contra judeus e outras culturas “indignas” da fé.

    Só um ponto eu discordo. A palavra de Jesus, ainda que houvesse, a princípio, uma delimitação geográfica (Israel), não foi direcionada apenas a judeus. Aliás, a ideias de “reino de Deus” descentralizou a fé, de forma que alguns judeus mais ortodoxos não aceitam esta difusão.

    Assim, Paulo foi expandiu uma ideia que, na sua origem, já estava destinada a outros povos que não fosse o povo judeu.